Recentemente,
o etnomusicológico moçambicano, Luka Mukhavele abriu a intimidade da sua
residência para, em nome da cultura, acolher cidadãos de (quase) todo o mundo -
com as suas culturas, tradições, línguas, práticas e costumes - afim de, numa
insólita harmonia, celebrarem a vida. O evento foi uma miniatura de um mundo
que só se tem por utopia. África continua a ser a parcela (mais) vulnerável.
nunca antes uma sentença reuniu (bastante) sentido quando pronunciada: Africa
wake up!
A primeira
ideia que nos percorreu a mente foi a ruptura, mas, a par disso, se atrela
outra, a continuidade: nos dias que correm, para determinados artistas, certas
produções artísticas não se enquadram nos padrões tradicionais, estáticos e
invariáveis das casas de pasto – geralmente muito movimentadas e,
sucessivamente, frequentadas por actores culturais diferentes.
Então, em
resultado dos onerosos custos monetários que se envolvem no aspecto de
segurança dos equipamentos, de logística entre outros factores denuncia-se
alguma não adequabilidade do palco tradicional para acolher uma manifestação
artística e cultural altamente complexa, sob o ponto de vista conceptual. Para
este tipo de realizações, ainda que não tenha outro nome diferente dos
tradicionais concerto, espectáculo e/ou show, ocorre uma ruptura.
Em
consequência de a essência do evento cultural – como por exemplo, a diversão, a
reflexão sobre os problemas que se manifestam no respectivo espaço social, os
géneros e estilos musicais – se manter, igualmente, ocorre uma continuidade no
mesmo processo.
Esta é a
segunda ideia que se nos apresentou, quando, naquele dia, cinco de Agosto, em
visita à residência do músico moçambicano Luka Mukhavele nos confrontámos com
uma casa que abriga uma estrutura que nos recorda um palco. Associado à
referida realidade, muitos aspectos estão envolvidos. Assim estava criado um
pretexto para travarmos um diálogo com o etnomusicólogo Luka, que já se
protelava há bastante tempo.
“A casa de
pasto está em constante movimento, o que, em certo grau, inibe que as nossas
realizações culturais transportem alguma intimidade. Realizar um evento rico,
no aspecto do conceito, numa casa pública, acaba por ser uma mutilação à
concepção que se manifesta na medida em que os artistas se limitam à publicação
unicamente da componente sonora”, explica-nos o etnomusicólogo.
Além do
mais não nos devemos esquecer de que “cada casa de cultura possui um
determinado carácter físico e não físico que, de certa maneira, condiciona que
determinados eventos sejam o que, finalmente, são”.
Produzir
a cultura que se quer
Se alguém pode
construir uma casa, conferindo-lhe uma estrutura física que se adeqúe a
possíveis realizações artístico- -culturais, o que, imediatamente, lhe propicia
que convide os seus amigos para um convívio que se aproxima ao que acontece nas
casas de pasto e, por isso, não exigir nenhuma recompensa material, sobretudo
num mundo que se conduz com base numa lógica marcadológica, as chamadas
indústrias culturais, no mínimo, para que isso suceda uma hipótese deve ser
válida: para o professor Luka Mukhavele, a música (ainda) possui um sentido
sublime, de relações humanas e sociais, o que, invariavelmente, contribui para
a preservação de alguns valores tradicionais.
O artista
não encontra outra explicação que não se resuma a um grande desafio.
Provavelmente, exista um segredo para a efectivação da referida experiência: “A
originalidade daquilo que as pessoas são na realidade. Elas não devem simular,
fingir e/ou agir como se fossem aquilo que se nos apresentam ser. Devem agir
como elas, efectivamente, são. É a par disso que nós, os Homens, caminhamos
para um cenário em que a cultura é produzida a partir da interacção humana. As
pessoas interagem com a tradição, a modernidade, incluindo as suas dinâmicas,
produzindo uma nova cultura em que algumas práticas se podem tornar tradições”.
Ora, se
esta lógica de raciocínio fizer sentido, como parece, nada nos inibe de pensar
que “algumas tradições que, nos dias que correm, queremos seguir cegamente em
algum momento foram inventadas por alguém para resolver uma determinada
situação e/ou necessidade”.
E este
tipo de pensamento possui algum mérito, na medida em que nos ilumina para que
possamos (re)criar as nossas tradições de forma cada vez mais consciente, como
se pode observar em todas as sociedades, e ao longo da história da Humanidade,
como defende o historiador Inglês, Eric Hobsbaum, num dos seus livros
intitulado The Invention of Tradition.
Uma
miniatura do nosso mundo
Aproveitando-se
da dinâmica que, no mês de Agosto, se instalou em Maputo em resultado da
realização da V edição do Movimento de Arte Contemporânea de Moçambique
(Muvart) que arrasta consigo cidadãos vindos de diversas partes do mundo, a
residência de Luka Mukhavele, espaço que acolheu o evento que nos serve de
mote, tornou-se uma espécie da miniatura do mundo actual.
Pessoas
das nações estabeleceram- se no mesmo espaço, ao mesmo tempo, comunicando-se
nas suas respectivas línguas, a consumir o melhor que a gastronómica de cada
país oferece – com destaque para a moçambicana – como forma de gerar um
verdadeiro ambiente cosmopolita.
Porque,
teoricamente, todos interagimos com todos, o professor Luka acredita que
estamos diante de um fenómeno ao qual não podemos/ poderemos abandonar por
muito tempo. Mas até que ponto isso é verdade? E, africanos que somos, como é
que o nosso continente se enquadra no mesmo debate? Outras questões podem ser
elaboradas.
Ganhemos
consciência de que fazemos parte do mesmo globo, a terra, bem como de que
presentemente, África, o nosso continente, continua a ser o centro de
convergências de interesse das potências mundiais, muito em particular, no
acesso de recursos para sustentar as demandas do ocidente.
Pior
ainda, em resultado disso, revolta-se o docente:“África é subjugada como se não
tivesse actores com interesses e visões políticas, culturais económicas e
sociais em relação ao seu povo, o que é preocupante”.
“Recordo-me de que da
maneira como se partilhou África, foi como se se estivesse a ignorar
praticamente a existência do povo africano. Já estudámos a História, sabemos
como é que alcançamos o actual estágio da realidade, não podemos permitir que
este fenómeno (a partilha de África) se repita. Infelizmente, estamos numa
situação que nos dá claras evidências de que a história se está a replicar”.
Maldita bondade!
Porque
África é uma realidade, um tema, presente nas discussões e preocupações de Luka
Mukhavele, o artista leva o seu ponto de vista ao extremo: “Eu penso que as
ajudas que nos têm dado só impedem que África avance por si próprio. Ou seja,
se se tivesse que pensar que o nosso continente é pobre tal pobreza seria
apenas ao nível de visão”, diz.
O que se
pretende explicar é que, diante das potências económicas e militares do mundo,
o continente africano está a sofrer uma disputa perante a qual deve ganhar
consciência e, em função disso, agir porque não é tão pobre como se apregoa em
todo o mundo.
Festival Internacional
de Maputo
Certamente,
no rol das realizações artístico-culturais que ocorrem em Maputo, o acima
exposto é uma referência incontornável. Em 2012, na oitava edição realizada em
Maio último, para a visão do público, entre outras atracções, o Mostly Made in
Mozambique (um grupo de trabalho artístico dirigido por Kika Materula
envolvendo outros artistas moçambicano) foi uma boa inovação. Desengane-se quem
assim pensa. Pelo menos, para o nosso interlocutor, um dos participantes, as
coisas não foram (bem) assim.
“Não
fiquei muito satisfeito com os resultados da minha intervenção. Penso que se
ficou muito tempo, no marasmo, de modo que até à véspera da iniciativa não se
sabia o que é que efectivamente iria acontecer, o que é muito oneroso para nós,
como intervenientes, porque arrastamos connosco um grupo de pessoas que nos
exigem alguma satisfação.Ou seja, se eu como líder não tiver conhecimento sobre
o trabalho que deve ser realizado, torna-se difícil orientar e/ou responder a
qualquer demanda do grupo de trabalho”.
Associado
à chegada tardia em Maputo de Kika Materula, a pessoa que orientou o Mostly
Made in Mozambique, Luka Mukhavele considera que o Festival Internacional de
Maputo devia ser melhorado no aspecto logístico-administrativo, “porque mesmo o
programa dos ensaios observou muitos embaraços em resultado de ter havido
tantos grupos de artistas e pouco espaço para os acolher”.
Ou seja,
“nós precisávamos de mais tempo para nos implantarmos e nos ambientarmos com o
palco, porque cada evento é um e, mesmo que se domine determinado palco, sempre
que se realiza um novo evento o palco torna-se novo”.
Levando a
sua opinião ao extremo, o artista considera que, por todas as razões
mencionadas, e sendo honesto consigo mesmo, reconhece que “a nossa intervenção
foi um fracasso, porque não conseguimos realizar ou transmitir todo o nosso
trabalho no conceito criado. A minha intervenção não foi bem-sucedida”. De
qualquer forma, como experiência de trabalho, o evento foi uma mais-valia,
afinal, serviu para olhe despertar no tocante à “necessidade de intensificação
e desdobramento da pesquisa em curso, sobre o sistema de amplificação dos
instrumentos tradicionais africanos”.
Mostly
Made in Mozambique abortado
Para o
autor destas linhas, naqueles dias de Maio do ano 2012, a grande dúvida que lhe
percorria a mente eram os procedimentos que iriam ser seguidos para a
continuidade do Mostly Made in Mozambique, muito em particular, quando se toma
em consideração que algunsintegrantes não residem em Moçambique e que, no fim
do festival, retornariam aos países em que trabalham.
O
comentário que se propalou na altura de Kika Materula foi muito simplista, mas
afirmativo: iriadar-se continuidade. De qualquer modo, mais de dois meses
depois, é salutar que se questione: em que estágio se encontra o referido
programa?
A verdade
é que Luka Mukhavele não tem nenhuma informação sobre a continuidade do Mostly
Made in Mozambique. Além do mais, na altura, não se havia falado a respeito
disso no seio do grupo. É como, em discurso directo, comenta Mukhavele: “Não há
nenhum plano de continuidade do trabalho a não ser que,no próximo ano, se pense
em melhorar a mesma iniciativa. Mas se for o caso, penso que se deve comunicar
com mais antecedência para que os artistas envolvidos se possam preparar
melhor”.
É por essa
razão que o músico considera que “se a responsabilidade da produção do Projecto
Mostly Made in Mozambique tivesse sido encarregue a um artista entre os
moçambicanos que residem no país, de modo que logo imediatamente interagisse
com os demais, os resultados teriam sido muito melhores”.
Um
diálogo que se deve travar
Nas suas composições
musicais, Luka Mukhavele continua a fundir os sons produzidos por instrumentos
tradicionais africanos com os convencionais/ tradicionais ocidentais e os
contemporâneos. É a par disso que considera estar satisfeito com os resultados
das sonoridades que daí emanam. Além do mais, “mesmo nessa diferença da
aparente disparidade de temperamento e das escalas há um (novo) diálogo que, em
sentido metafórico, é um modelo do tipo de debate que o mundo deve travar mesmo
em termos políticos, económicos e socioculturais, para que sejamos tolerantes
uns em relação aos outros”.
Mais importante é o
recado que o artista deixa para África: “Enquanto nós não nos libertarmos
culturalmente, continuaremos a pensar que precisamos de importar tudo para o
nosso dia-a-dia”. Ou seja, mais do que nunca, é oportuno que se afirme:
“África, desperta!”, como, sistematicamente, Luka Mukhavele o faz nas suas
composições.
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