Homem adulto que se sentia, convencido da sanidade
das suas faculdades físicas, mentais e psicológicas, diante do sofreguidão em
que se encontrava, o Coração compreendeu
que não lhe restava outra alternativa a não ser Parar de Sofrer. Tomou o
Ópio do Povo e ensandeceu.
A Vista, crente num discurso miserabilista e
hermeticamente ineficaz em relação à necessidade de se ofertar duros golpes à
pobreza absoluta que rechaçava a si,
incluindo os seus próximos, abriu a vista e criou patos. Imbuído da auto-estima
criacionista – vigente naqueles dias na sua Aldeia – decidiu empreender. Que
pena, o Criador Original se esqueceu de passar-lhe os truques para o sucesso: as aves, vítimas do vírus
causador de “new castle”, nada mais produziram do que algumas dezenas de
ovos podres que, no lugar de perpetuarem a espécie, legaram àquela região da Aldeia
um odor nauseabundo perante o qual se há memórias são de algumas claras e gemas
que se encrostam nalgumas carapaças. A experiência da Vista foi desastrosa.
“Não é qualquer Vista que, com o business
de criar patos fica bem-sucedida”, ficou-lhe claro.
O Ouvido, no seu mutismo e cegueira habituais, permaneceu
inerte, simplesmente, a escutar o rumo dos acontecimentos com a sua sabedoria
saloia.
Galanteador, como sempre, com uma voz
indefinidamente romântica, apaixonante e apaixonada, aparentemente, igual ao
Criador Original, o Coração era o único bem-sucedido entre os irmãos. Mudou o
traje informal que sempre o caracterizara, por outro tipo de vestimenta que
além de valer-lhe um novo sotaque, confundindo-se assim as suas origens, contribuiu
para que facilmente convencesse outros corações sôfregos, carentes,
necessitados para Pararem de Sofrer aderindo
ao Ópio do Povo.
Orgulhoso em resultado da sua riqueza e
prosperidade, fruto de conquistas permanentes de corações sôfregos, débeis e
necessitados, o Ópio quis alargar a sua esfera de acção: criou propagandas religiosas, difundidas pela
televisão, com o fim de proliferar e infestar a Aldeia com o seu romantismo. Até
aqui tudo estava bem. Mas o Ópio, desvirtuando-se da sua missão original, começou
a vilipendiar o Coração em pleno público, atacando a sua cultura e tradição.
À guisa de exemplo, considerou que o sofrimento do
Coração era movido e estava assente na esteira (símbolo da tradição e cultura da sua Aldeia) em que desde
tenra idade repousara na sombra de um canhueiro. Outros corações aperceberam-se
de que se o Ópio entendia que a pobreza absoluta contra a qual o Criador
Original, ainda que bem-sucedido no seu negócio de criação de patos, travara uma
batalha inglória, se torna fecunda devido à esteira, então, no dia seguinte, o
Ópio podia afirmar que a Marrabenta, o Tufo, a Xiguinha, a Palhota, a Capulana,
por exemplo, também são fontes de toda a lepra
que lhes acompanhava, o que não é verdade.
Meticuloso, como invariavelmente sempre fora, o
Ouvido ficou a saber que, em pelo menos em duas Aldeias, lá nas bandas do
Ocidente, as práticas do Ópio estavam a ser vítimas de um processo de investigação
criminal. Porque é que o mesmo não
acontecia na nossa Aldeia?, questionou-se o Coração perante o Ouvido que,
em jeito de comentário, acrescentou: o Criador Original não está nem tão pouco
preocupado com isso. Estranho não
é?
O Coração, cuja estupidez e escassez de
discernimento que habitavam a sua essência ia se reduzindo, convenceu o Ouvido
– o depositário de todas as verdades com as suas mentiras – para que se
reassociassem à Vista a fim de analisarem criteriosamente os factos. Posto
isso, compreenderam que o Ópio e o Criador Original eram sócios. E não lhes
faltaram argumentos: Porque é que no dia
da inauguração da Catedral-mor, o Ópio do Povo esteve reunido, a portas
fechadas, com o Criador Original numa situação em que a Aldeia é laica?
Eu, Aldeia, tenho medo das perguntas que o Coração,
a Vista e Ouvido me colocam porque sabem que se o Ópio do Povo e Criador
Original andam consorciados numa Aldeia laica que sou isso, no mínimo, isso representa
uma promiscuidade imunda.
Escrito por Inocêncio Albino
Sem comentários:
Enviar um comentário