Queria escutar e dançar ao ritmo
do som gerado pelo contacto entre as linhas-férias e o comboio. Caso isso fosse
impossível, não havia algo melhor que escutar zelosamente os nostálgicos ruídos
produzidos pelos operários da metalurgia falida.
Necessitava de deixar o meu
corpo teso vibrar ao ritmo das sonâncias originadas por uma mulher machangana,
na sua relação com o pau de pilar, o pilão, a peneira, o alguidar sempre que
preparava a xima para as refeições da sua família alargada. Estava carente e,
pior ainda, teso.
Justo eu que, em jeito de
desdém e repúdio a tais sonoridades, sempre glorifiquei os meus gostos musicais
vulgares e profanos. Todos esses quereres exóticos desabrochavam do meu corpo
hirto, incluindo alguns orifícios hirsutos.
A baia de Maputo (um espaço
cuja pureza da sua cândida, excêntrica e insólita paisagem marinha não diferia
mais de uma miragem nostalgia para os cidadãos puritanos e conservadores) padecia
de uma doença secular, na verdade, uma orfandade do indefinido azul marinho e
um desaparecimento contínuo de algas, eucaliptos, palmeiras, medusas, entre
outras espécies animais e vegetais com os quais, igualmente, se tolhe a
edificação de um sentido do verde de vegetação para um Oceano Índico digno de
tal nome.
O mais caricato é que, apesar
de que disso dependia a minha sobrevivência, não sabia quando é que o musicólogo
moçambicano Luka Mukhavele – a pessoa que em nome da sua paranóica e utópica
carência da preservação da música tradicional africana, no país –, mais uma
vez, transportaria o pilão, o alguidar, a peneira, a esteira, a vassoura de
palha, todo um contexto doméstico da vida rural africana para o palco e
realizar um concerto. Só assim eu ficaria liberto.
Naqueles dias, naquelas bandas
de Maputo, a minha namorada, uma machangana recém-emancipada da aldeia, era
como se tal poder libertário que lhe fora conferido lhe tivesse destinado a uma
rua alheia: não queria mais saber do modus
vivendi das suas origens. As suas calças, brancas e apertadas, dera uma
nova definição aos seus contornos de mulher. Os seus lombos, as suas ancas,
incluindo as suas nádegas retesadas faziam-na uma Maria-bonita.
Putz! Eu estava totalmente
perdido! Nem ela podia-me ser útil.
Em tudo isso, o pior é que eu
era crente nas palavras de Chico António, o alquimista da música africana, que
fazendo jus àquilo que, para si, completava o seu sentido de música dissera:
“A música, para mim, é uma
combinação de harmonias sentimentais, da maneira de estar de uma sociedade
conjugando com os sons, com os sentimentos do que nos rodeia (as pessoas, a
natureza, os rios). Tudo isso é música, porque as folhas quando estão a abanar
fazem música, os jacarés quando estão a nadar fazem música, os passarinhos
fazem música. Acho que o homem (também) aprendeu a música através da natureza”.
Quem nisso não acredita que
escute Khanimambo, o último trabalho discográfico do saxofonista moçambicano Moreira Chonguiça. Na referida
obra de arte, um tributo aos artistas da África Oriental, Chico António faz a
mesma consideração reiteradas vezes. E eu, um confesso admirador do seu
trabalho, acredito na sua sábia ejaculação oral. E mesmo que tal afirmação não
constituísse verdade eu acreditaria, afinal, neste momento é disso que
preciso.
À beira da morte, totalmente
débil, saí para a rua, algures neste guetho
que é a cidade de Maputo. Encontrei um
jovem preto como eu muito teso, embora não da mesma necessidade. Com ele, no
mesmo espaço, ao mesmo tempo, coabitava uma série de bugigangas à venda.
Era um bussiness que, naquele espaço, podia muito bem fecundar e animar a
corruptela de um cinzentinho moçambicano com os bolsos bem retesados, furados e
a jorrar vazios por todos os cantos. Corcovando-me vasculhei os objectos.
Perdido entre os mesmos, dignos da desconfiança de qualquer homem lúcido, encontrava-se
um tal Maré de Adriana Calcanhotto. Carreguei-o. Estava selado. Era
genuíno.
– Ah!, respirei fundo antes
de elaborar a mais sábia, desesperada e esperada questão. – Quanto custa?
– Cem Meticais, respondeu-me
o sujeito. Excitado, vasculhei o bolso, reuni as moedas, paguei-o e, sai
correndo para a minha palhota maticada. Nos dias que correm, “ao cair da tarde”
só escuto “aquela canção que não toca no Rádio”. Mais importante ainda, oiço o
meu homem a gemer.
Escrito por Inocêncio Albino
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