Impetuoso,
cheio de energia e sabedoria saloia, nem a mais rigorosa crítica às artes detém
o artista plástico suíço. Luc Andrié chegou (ao V Muvart) com um assunto sério
e desafiador: O Homem branco já não tem pele...
Se nos
recordarmos de que, invariavelmente, a inspiração para a produção artística,
muitas vezes, está no espaço social em que o artista se encontra e, tomando
essa hipótese como válida para as obras expostas no Centro Cultural
Brasil-Moçambique sob o mote O Homem branco já não tem pele, a primeira
pergunta que se nos apresentou oportuna foi: em que contexto sociocultural,
político e/ou económico a frase em alusão foi gerada?
Colocada a
questão, Luc Andrié, imediatamente considerou que “a primeira questão sobre a
qual reflectimos quando fomos convidados para a V edição do Movimento de Arte
Contemporânea de Moçambique, Muvart, é que nós somos cidadãos de raça branca e
que vivemos numa sociedade, a ocidental, muito desenvolvida que apesar disso
também tem os seus problemas.
Como o V
Muvart decorre sob o mote Estar, nós entendemos que era muito pertinente que
falássemos sobre os nossos problemas; acerca da nossa percepção em relação à
sociedade em que vivemos, como forma de oferecer aos moçambicanos um olhar
(talvez) um pouco cruel sobre as sociedades ocidentais de modo que este país e,
por extensão, o continente não admire continuamente Europa”.
Uma
sociedade problemática
Para Luc
Andrié, nos dias que correm, é quase impossível escudar as crises que se abatem
sobre Europa, invariavelmente, resultados dos erros que o cidadão europeu
cometeu ao longo dos séculos. Mas como é que isso impacta na pessoa humana? “Um
dos (nossos) problemas grandiosos é o stress, a solidão, a perda do desejo de
viver, da relação humana, dos valores da solidariedade. É nesse contexto que se
molda e resulta um Homem que, pelo facto de estar constantemente preocupado com
a produção, acaba por se tornar numa máquina”.
Nem vale a
pena afirmar que, ainda que seja uma imagem, uma linguagem metafórica, a
contribuição do grupo suíço (constituído por Luc Andrié, Elizabeth Llach, Anne
Rochat e Gilles Furtwangler) em vídeo, pintura, desenho e uma linguagem poética
não teria melhor mote diferente do proposto. Ora, esta concepção é preocupante,
problemática e desafiadora porque, apartando-se a visão criada pela imagem,
quando um Homem fica sem pele, a sua imunidade contra os males do meio encontra
a morte.
Luc Andrié
é um cidadão com uma ligação umbilical com Moçambique. Nasceu neste país, aqui
frequentou os primeiros cinco anos de escolaridade e partiu para a Suíça. É
esta relação que não somente lhe dota de um conhecimento profundo em relação ao
continente africano, como também dos problemas que o mesmo enfrenta. Por essa
razão, Luc tem a sorte de ser um dos poucos cidadãos do seu país (e da Europa,
por extensão) que entende uma língua nacional moçambicana, o Changana.
A partir
daqui, já se pode perceber toda a motivação, as razões, os anseios abrigados na
sua arte: “um desejo muito forte de chegar a Moçambique e reconhecer que os
moçambicanos – como quaisquer cidadãos do mundo – têm muitos problemas, alguns
dos quais expostos a partir da produção dos seus artistas, mas ao mesmo tempo
que nós também, como cidadãos europeus, temos os nossos. Criaremos um debate em
volta desta realidade, de ambas as percepções em relação ao mundo”.
Uma
visão do mundo
Ainda no
contexto da mostra “O Homem branco já não tem pele” Elizabeth Llach, que é
esposa de Luc, participa com um conjunto de desenhos que, muitas vezes, a sua
complexidade sob o ponto de vista de elaboração e de associação de diversos
contextos e realidades confere ao espectador a possibilidade de fazer múltiplas
leituras partindo da mesma obra.
Mas, mais
do que isso, nas suas obras, Elizabeth preocupou-se em dar ao espectador as
possibilidades de realizar um olhar cada vez mais introspectivo sobre a
realidade com a qual se defronta. Um olhar que lhe possibilita recordar-se de
algumas situações, boas ou ruins, por si experimentadas de modo que haja uma
faculdade de múltiplas leituras em relação às criações. Por essa razão, os seus
desenhos revelam uma mestiçagem de várias realidades, múltiplos mundos,
contextos e acções.
Faz
sentido a relação de paralelismo que Andrié estabelece entre a produção
artística de Llach e a escultura africana. “Para mim, o desenho de Elizabeth
não difere de uma escultura Maconde, sobretudo porque este tipo de escultura
oferece várias possibilidades de leitura e interpretações. Ela congrega em si
várias realidades, partindo da ideia de que no nosso ego, nas nossas entranhas,
existem vários mundos que se confrontam”.
Denunciar
o problema
Seja como
for, quando nos recordamos de que caso alguém afirme que O Homem branco já não
tem pele, como os artistas suíços o fazem, um pouco de conhecimento de história
e de antropologia pode valer à pessoa que se defronta com tal afirmação
múltiplas questões. Mas também se nos recordarmos da supremacia racial
defendida por Hitler, nada nos impede de perceber uma denúncia de uma possível
decadência do Homem branco. O que é que efectivamente se pretende que se
perceba com essas obras?
Durante
muito tempo, o artista observa as acções dos Homens as quais, num contexto
apropriado, são por si reproduzidas com base num trabalho que se assemelha a
uma representação cénica. Tais actos são fotografados e pintados. Foi na mesma
perspectiva que o artista produziu um conjunto de sete quadros que representam
igual número de Homens. É como se eles fossem soldados, ignotos, com um olhar
absorto, perdido e obtuso.
Se entre
eles há parvos, idiotas, comandantes – essa leitura cabe ao espectador realizar
de modo que chegue a alguma conclusão. O facto de a imagem não ser nítida,
afinal, O Homem branco já não tem pele – o que, por um lado faz com que seja
praticamente impossível captar-se o rosto de tais Homens com base numa máquina
fotográfica, por outro – move o leitor a ser muito atento nas suas observações.
Espera-se
que no seu esforço de olhar, o espectador faça igualmente alguma introspecção.
A meta não é, necessariamente, mostrar a ideia do belo que há no Homem europeu,
mas, igualmente, o conjunto de sentimentos e fraquezas que possui.
Um
autodidacta
Diante das
obras de Luc, fica-se com a impressão de que o seu autor tem um domínio
intelectual aguçado em relação à anatomia, ao sentido físico-antropológico e
biológico da existência humana, o que, em certo grau, pode induzir-nos a pensar
que o artista possui alguma formação académica numa das referidas áreas, o que
não é verdade.
“Eu não
fiz nenhum estudo universitário. Concluí o meu quinto ano de escolaridade em
Moçambique e fui para a Suíça, onde realizei o sétimo ano para, mais adiante,
frequentar alguns estudos sem muita importância. Eu sou um autodidacta total e
completo. Presentemente, estou a trabalhar numa grande universidade de artes
local, na Suíça, como professor”.
O facto é
que “tenho um grande interesse pelo ser humano. Sou um muito curioso e realizo
leituras no campo de conhecimentos de sociologia, antropologia, filosofia;
tenho a possibilidade de viver com uma esposa artista e que gosta do trabalho
que faço. Ou seja, tenho o percurso de um homem curioso que gosta das pessoas e
que está interessado nos movimentos interiores e profundos da existência
humana”.
É ao longo
desta relação quase umbilical com as artes que Luc Andrié ganha uma nova
percepção em relação às artes: “Não se trata de um trabalho hostil para com a
pessoa humana, porque até oferece uma relação muito afectuosa. Se tivesse a
noção do carinho que tenho por este trabalho, as artes, ficaria assustado. Crio
uma tensão entre o carinho e o assusto em debate”.
Esqueceu-se
de si
Uma última
hipótese estabelecida pelo nosso repórter sociocultural, diante das obras, com
a finalidade de fazer o seu enquadramento, é que elas constituíam uma profecia
sobre um tempo em que, efectivamente, O Homem branco não terá pele. A ser
válida esta hipótese, a pergunta que se colocaria no futuro seria: O que o
moveu a sofrer tantas transformações no seu organismo?
“O Homem
esqueceu-se de si mesmo”, afirma o casal em uníssono, acrescentando que “nunca
pensou em si próprio. Pensou no poder, em construir, em realizar projectos, em
fugir, mas nunca nas suas raízes, na sua essência. Não possui nenhuma
capacidade para aprofundar o seu conhecimento sobre as suas origens.”
Consciência
de culpa
De acordo
com o artista, algumas das suas obras serão oferecidas ao Museu Nacional de
Arte como forma de prestar tributo ao seu país de nascença. “Realizo este gesto
porque nasci aqui, compreendi coisas muito importantes e profundas da vida aqui”.
No entanto, quando vira para si, Luc Andrié visualiza a metáfora de um cidadão
europeu, culpado por parte do rumo que o mundo tomou.
“O que
pretendo dizer é que o Homem branco não é apenas algo extraordinário. Ele
(também) possui os seus problemas. Ele viveu muito tempo a pensar que devia
ensinar as pessoas sobre as coisas que ele sabia em relação à religião,
política, economia, etc. Veio para África a fim de mudar a vossa cultura, o que
estragou a sua capacidade de bondade. Nos dias que correm o Homem branco tem
problemas com os sentimentos de bondade, de solidariedade e de justiça”.
E não
faltam argumentos. “A Europa participou em todos os problemas com os quais o
mundo se debate agora: a poluição do meio, o aquecimento global, os problemas
do (des)equilíbrio ecológico, monetário. Porque é que todo o dinheiro (só) está
na Europa e na América? Porque é que as decisões políticas são definidas na
Europa, na América e na China, numa situação em que África, unicamente, deve
segui-las?
O que
sucede é que este cenário, por fim, acabou por estragar uma mentalidade que se
degenera na origem de um pensamento arrogante, como também de um Homem que,
devido à consciência que possui sobre os males que praticou, o salazarismo, o
hitlerismo, o fascismo, vive inseguro com medo e aterrorizado”.
Estereótipos
que enganam
No ano
passado, altura em que o Grupo de Teatro Mutumbela Gogo celebrava 25 anos da
sua existência, o conceituado dramaturgo sueco Henning Mankell considerou que
se ele fosse um profeta ia dizer ao mundo inteiro para escutar os africanos.
Esta foi a sua forma de reconhecer a sabedoria que este povo possui. Mas até
que ponto isso é verdade?
Luc Andrié
diz estar de acordo com o raciocínio de Mankell: “Os africanos têm um
conhecimento da realidade da relação entre os Homens que nós, os europeus, não
temos. Nós não sabemos o que é travar uma relação humana. Sofremos muito”.
No seio
disso, como explicar os estereótipos que se criam em volta de África? A
resposta é uma: “Os estereótipos que os Homens brancos têm em relação aos
países africanos só ajudam-lhes a não abrir a vista, a não treinar os seus
ouvidos, a não olhar para a realidade. Por isso chegam a África, passam alguns
dias e regressam para a Europa convencidos de que conhecem África. Ignotos, não
sabem nada!”.
Sem comentários:
Enviar um comentário