Quando
criança, o autor destas linhas costumava ouvir as pessoas adultas – em
particular os seus progenitores – a reprimirem os filhos sempre que estes os
“acusassem” de estar a mentir em relação a determinados factos. Hoje, com mais
de 20 anos de vida, compreende claramente que eles não mentiam, como
(equivocadamente) se dizia, simplesmente falhavam: Victor Sousa, um ancião de
60 anos de idade, não tem nenhum prazer de dizer inverdades. Descubra, em A
Trança Madura, as verdades a partir das quais o artista açoita os “nossos pais”
pelas falhas que cometeram...
Muito
recentemente, tivemos a oportunidade de participar na cerimónia do lançamento
de mais um documentário de autoria do jovem realizador moçambicano, Lionel Moulinho.
Trata-se de A Trança Madura. Desta vez, Moulinho dedicou o seu tempo e recursos
para retratar, com base nas técnicas da sétima arte, a vida, a obra, o
percurso, os anseios, os receios e as expectativas do célebre artista plástico
moçambicano, Victor Sousa, em relação ao futuro do país.
“Se
não fosse por este menino, o Lionel Moulinho, penso que muita gente não saberia
como é que foi a infância de Victor Sousa”, considera o artista visivelmente
emocionado. No entanto, para nós o mérito do referido documentário de cinema,
na verdade uma grande reportagem cinematográfica, não somente se limita no
aspecto em alusão. Ele revela o pensar sobre a arte de diversas pessoas,
algumas das quais já perecidas, como, por exemplo, o célebre crítico de arte
Júlio Navarro.
Em
determinada ocasião, acerca de Victor Sousa, Júlio Navarro considerou que ele é
um homem que tem sabido que a produção da arte significa muito labor e suor, o
que se percebe nas suas obras: “Julgo que na pintura, por exemplo, vê-se que o
artista está a tentar explorar cada vez mais a figura humana, algo extremamente
detalhado, aproveitando parte das suas curvas, dos seus principais movimentos,
para gerar arte”.
Lutar pela/para a arte
Nas
artes plásticas, Victor Sousa é comummente conhecido como um artista
multifacetado, polivalente e, em cada área, dinâmico e original. No entanto,
desengane-se, então, quem pensa que, desde o início da sua relação com a arte,
Sousa foi (bem) compreendido e motivado para trilhar tal rumo pelos seus
contemporâneos.
Em
relação ao seu envolvimento com as artes, o artista recorda-se de que teve de
superar a incompreensão dos seus próximos. Por exemplo, “o meu pai queria que
eu fosse enfermeiro ou funcionário do Estado”. Em resultado disso, ele
“obrigou-me a ser qualquer coisinha para poder trabalhar na Estação dos
Caminhos-de-Ferro de Maputo. Eu disse-lhe que sou artista, mas ele não queria
aceitar essa realidade”.
Para
fazer frente a isso, “realizei dois cursos só para o enganar. Felizmente acabei
por fazer todas as coisas que eu queria, litogravura, cerâmica, pintura,
incluindo ser docente”, considera o artista. É por essa razão que uma das
imagens que se tem de Victor Sousa retrata uma pessoa entusiástica, efusiva,
alegre, amiga, como realça o jornalista moçambicano Machado da Graça.
Arte que abriga verdades
No
ano passado, altura em que celebrou o 59º aniversário da sua vida, Victor Sousa
realizou uma mostra de artes, Verdades Ocultas, para a qual convidou os
apreciadores da sua arte para se deleitarem não somente com o aspecto estético
contido nas referidas criações como também para desvendarem as verdades (muitas
das quais consideradas tabus e, consequentemente, em resultado disso, protelado
o seu tratamento) que se escudam.
Já
naquela altura, Jorge Dias, outro artista plástico moçambicano, que na referida
mostra, Notas Soltas de Verdade Ocultas, participou na qualidade de curador,
considerava que na pintura de Victor, “a presença da figura feminina identifica
a preocupação com os valores étnicos, familiares, morais e religiosos”.
Na
verdade, trata-se de uma preocupação que sempre marcou o debate do artista nos
mais variados momentos da sua vida e da sua produção artística. O documentário
A Trança Madura acaba assim por ser um espaço de continuidade do referido
debate.
Facto,
porém, é que, no entender de Jorge Dias, “Victor Sousa é, na verdade, um exímio
utilizador da parábola como forma de expressão. Nele, as pinturas são muitas
vezes Notas Soltas de Verdades Ocultas. É assim que procede na pintura, como
recurso técnico mais utilizado na concretização da obra. Não necessita de um
excessivo “cozimento técnico” na cerâmica e na gravura. A narrativa da pintura
remete-nos para factos ocultos. As realidades são recriadas no seu imaginário.
A cor, a linha e a composição transmitem sinais subjectivos das realidades
sociais” (Sic.).
E, a par
disso, vale a pena realçar que, em certo grau, o documentário A Trança Madura
revela o repúdio do artista em relação à disfunção do sistema de transportes e
comunicação urbana, ao lamentável cenário dos serviços de saúde e saneamento
público, ao gigantesco fenómeno de corrupção que se glorifica no país, ao
acentuado índice de desemprego que fecunda o espírito de exploração da
mão-de-obra por parte do patronato, à inoperância dos serviços municipais na
recolha do lixo na cidade, à imundície que caracteriza e marca negativamente o
dia-a-dia de alguns citadinos, à queda dos valores de solidariedade, irmandade
entre os Homens em resultado da criminalidade, à prática de mendicidade que
desacredita os lares do acolhimento da pessoa idosa desfavorecida, à
prevalência de meninos da rua a potenciar o índice dos futuros criminosos, à
insegurança que se instala continuamente em Maputo, entre outros aspectos
execráveis.
Uma cultura (de)cadente
No
cinema moçambicano, uma área em que para se operar, “exige uma vontade
indomável pois facilmente se reúnem os requisitos para não fazer, para se
desistir”, como considera o professor António Cabrita, Lionel Moulinho começou
por obrar o documentário “Ecos de Silêncio” sobre a vida e obra do conceituado
músico moçambicano (já perecido) João Paulo.
Moulinho
realizou a obra “Pfunguza” em que torna conhecido o percurso de outro artista
plástico moçambicano, Noel Langa, realizando o seu percurso cinematográfico.
Diante de tal realidade marcada por uma série de dificuldades, António Cabrita
considera que “a resistência de Lionel ganha (...) um significado político: ele
faz, apesar das adversidades naturais ao seu estrato social, da indiferença dos
organismos que deviam apoiar a cultura, do ciúme e inveja de alguns agentes da
cultura que vivem do perpétuo queixume ou adiamento pessoal, das reticências
com que a própria classe profissional olha para o seu percurso de outsider,
apesar das suas próprias deficiências de formação, que vai superando por
“tentativa e erro”, num claro caso de autodidactismo que não se assusta com as
toneladas do que lhe falta aprender e antes se atira ao trabalho para isso
mesmo: para fazer e corrigir, fazer e aprender fazendo, fazer e sobreviver
nessa única vocação que admite para si”.
Fica-se
com a impressão de que a decadência do cinema moçambicano e das actividades
culturais só não acontece devido à resistência das pessoas que nela operam.
Essa resistência, ainda que muitas vezes difícil de percebê-la, confere algum
brio à nossa cultura.
Mas
é como o jornalista Machado da Graça, que participa no mesmo documentário,
comenta: “Lamento, mas acho que o Ministério da Cultura não tem feito
praticamente nada para que os artistas moçambicanos possam trabalhar como
devem. Se existe cultura e arte em Moçambique, neste momento, é porque as
pessoas, os próprios cultores da arte e da cultura se esforçam, se mexem e
realizam acções. Da parte do Ministério da Cultura não creio que venha algum
apoio. Não faço ideia, é provável que possa estar a ser injusto, mas não
acredito que o Victor Sousa possa ter recebido algum apoio do Ministério da
Cultura, como a maior parte dos outros artistas e fazedores de cultura do nosso
país também não receberam”.
Num
outro desenvolvimento, em jeito de argumento, Machado da Graça afirma que “os
governantes irão dizer que o país é pobre e que as prioridades são outras, mas,
para mim, isso não é uma desculpa. Acho que o Ministério da Cultura devia fazer
muito mais pelos artistas moçambicanos”.
O civismo está a ruir
Profundo
conhecedor da cidade de Maputo, desde os tempos em que era Lourenço Marques,
Victor Sousa esboça uma opinião não menos melancólica em relação ao aspecto com
que, habitualmente, a urbe se apresenta: “Presentemente, a cidade de Maputo
está completamente estragada. Antigamente as pessoas de direito pintavam os
edifícios e preocupavam- se com o bem-estar das pessoas e da urbe”.
É
em resultado de tal conhecimento, fruto da sua relação com a capital como
artista e como cidadão, que Victor Sousa pode afirmar: “Quando uma pessoa
começa a perceber que a educação cívica lhe mostra a forma como dignificar a
sua família, comporta-se como as pessoas que são bem-educadas se portam. Por
outro lado, assim que as pessoas se apercebem de que quando lhes é dito que se
estão a portar mal, cumulativamente, está-se a dizer que os seus pais (também)
se portaram mal na sua educação – isso é o que está a acontecer na cidade de
Maputo”, desabafa o artista cujas imagens do filme enfatizam a precariedade por
si repudiada.
Assim,
A Trança Madura acaba por ser uma grande reportagem cinematográfica. A obra
pode ser adquirida nas principais casas de cultura da capital moçambicana.
Na
qualidade de professor que é, Victor Sousa considera que “o que eu gostaria que
acontecesse era que as pessoas pesquisassem mais a fim de conhecerem com
profundidade as coisas”. Ou seja, “que elas não se conformassem com a
ignorância e com a pobreza”.
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