quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Em tudo isso, perdeu-se um (grande) humanista!




“Isto não está bom, mas já esteve muito pior. Portanto, pedia-lhes que lutassem pela mudança das coisas no seu país. Este país merece o contributo de todos e precisamos de gente de qualidade, independentemente de raças e credos”, Kon Nam (1939 – 2012).

Na vida existem inúmeras maneiras de falar de uma realidade. A recordação podia ser uma forma ideal. Mas, neste caso, não se mostra adequada. Pelo menos em relação ao célebre fotógrafo moçambicano. Kok Nam não encontrou a morte como, de forma melancólica, os factos nos pretendem convencer. Nam existe e está vivo nos corações de cada um de nós, os seus amigos, alunos, filhos, admiradores. Através das suas obras comunica-se connosco. Diz-nos palavras.

“Éramos todos pobres. Mas isso unia-nos. E o sentimento de que a figura cimeira do Estado era como nós e um homem de carácter moral unia-nos... Mesmo na escassez...”, certa vez, considerou Kok em entrevista cedida ao escritor António Cabrita referindo-se ao Presidente Samora Machel.

Ao longo dos séculos, no decurso da milenar história da existência humana, a sabedoria popular não podia ter sintetizado tanto conhecimento em apenas uma sentença: Uma fotografia vale muito mais que mil palavras. Disso, as obras de Kok não são uma excepção, são a própria regra. Além do mais esta personalidade (cujas obras, em parte, nos atardaremos a abordar) tinha uma capacidade invulgar – “escrever através da fotografia”, assim considera Elvira Viegas, uma célebre cantora moçambicana. Caso contrário, este último aporte da mesma artista não teria sentido: “As suas criações fotográficas transmitiam conteúdos”.

Perante um desafio... persistir


Um humanista no sentido profundo da palavra é o que as suas fotos nos revelam sobre si. Quando soube do desastroso acontecimento, @Verdade acedeu a uma parte do rico acervo fotográfico de Nam: são obras que nos fazem inúmeras revelações e, invariavelmente, assumindo um carácter progressista, para denunciar uma precariedade perante a qual nenhum cidadão moçambicano, nenhum humano, se deve prostrar.

Seres humanos, com próteses de diversa natureza, cujos membros do corpo da maior parte das pessoas em alusão foram mutiladas por uma guerra infundada como, aliás, todas as situações de luta não possuem fundamento, por ceifarem vidas humanas, uma preciosa dádiva sem preço.

A obra em alusão narra uma parte da nossa história, a guerra dos 16 anos. De uma ou de outra forma, compreenda-se, o nosso objectivo não é sublimar o evento aludido, mas a capacidade de um Homem que, com o seu olhar cúmplice, apesar de lhe terem sido amputados os braços, decididamente enfrentou o desafio de ir à escola, esta instituição discriminatória, de modo que seguramente pudesse fazer frente aos desafios de um futuro indubitavelmente incerto. Esse Homem, longe de quaisquer metáforas, é um moçambicano.

Na referida obra, o rapaz que se deixou captar por Nam, além de assumir-se um exemplo a ser seguido, insiste em emitir um conselho secular: perante um desafio, uma dificuldade, o ser humano deve persistir e lutar pelos seus ideais de modo que possa transformar a realidade em seu benefício.

Último recurso

Se nós, movidos e inspirados pela sensibilidade humanística de Nam, consideramos que a luta armada, em resultado de muitas vezes eliminar vidas humanas, é algo sem fundamento, perante as suas obras percebemos que não é bem assim: os ataques militares são o último recurso que um povo ao qual se recusa o direito nato da liberdade, recorre para contrariar a opressão. É essa a imagem que, mais uma vez, o olhar cúmplice de dois soldados, sentados numa estrutura que nos recorda uma trincheira, emite.

Num conflito há esperança. Uma expectativa de, contornando todos os riscos conhecidos incluindo a perda da vida, o soldado sair imune e, por via disso, libertar o povo pelo qual guerreia.

Reconstruir

Ainda que na mais nobre literatura, ou seja, o livro de todos os tempos, a Bíblia, se considere que a verdade é o princípio da liberdade, se consideramos que para algumas pessoas, para determinados regimes e/ou ou sistemas de governação, certas verdades são uma espinha aguçada no coração, determinadas obras fotográficas não poderiam ter sido realizadas. Estas fotos denunciam ocorrências maléficas incluindo os seus praticantes, os prevaricadores.

Seja como for, se aceitarmos que as obras de Nam são um viveiro de várias qualidades didácticas, o que não constitui nenhuma falsidade, então é verdade que ao realizar uma outra foto, num lugar incerto para muitos moçambicanos, mostrando um conjunto de jovens a (re)construir o país, ganharemos a consciência de que a edificação de uma nação estável, em quase todas as dimensões, é tarefa de todos os moçambicanos e não da boa vontade dos doadores internacionais com os seus favores. Em resultado disso, trabalharemos.

É interessante notar que as fotos de Nam registaram os momentos belos e conturbados do percurso do nosso país. No entanto, mesmos as que revelam os mágoas dos tempos, o aspecto estético, o belo que se conserva em si não se deixa esfumar pela melancolia do conteúdo que possuem. É nesse prisma que um comentário de Nam ganha um amplo sentido didáctico-pedagógico, mas também de expressão do amor ao próximo:

“Toda a gente tem um lado bonito, se eu estou a olhar para si e acho que é uma pessoa bonita a imagem sai bonita, luminosa, se olho para si e se a sua imagem é negativa para mim, e há algo em si que me repele, a fotografia sai frouxa, sombreada, sem impacto”.

Há fome na Zambézia


Diante das fotos de Nam, o leitor não precisa de possuir um elevado grau de escolaridade como condição de/para compreender as denúncias que o autor faz. As obras despertam no âmago da pessoa que as vê uma série de sentimentos – repúdio em relação à situação, empatia para com as vítimas, e, por fim, um convite para a acção –, para a necessidade de contribuir para que a realidade sofra alguma transformação social favorável.

Em resultado de algumas indicações, sob o ponto de vista de informação, que portamos, nós decidimos considerar que há fome na Zambézia, mas podia ser em qualquer outro lugar. Essa se calhar seja uma maneira de sintetizar uma série de acontecimentos negativos – má nutrição, anorexia, conflitos no seio da família, desrespeito, prostituição, criminalidade, mendicidade, etc. – que derivam da escassez de víveres.

Esse olhar desesperado de uma idosa que, pacificamente, se deixou captar acompanhada de um conjunto de crianças curiosas (com um destino incerto) para as quais de escola, sapato, camisa, peixe, etc., só se fala para que, no mínimo, tenham a ideia da existência de tais realidades transmitem mensagens: os senhores não podem/devem permanecer inertes e permitir que esta mágoa se perpetue.

Mas, infelizmente, em contra-senso, as fotos de Nam também nos revelaram que a nossa sociedade se está a edificar com base em alicerces da descriminação e da indiferença. Na cidade de Chimoio – outra urbe em que nos anos de 1980/90 a fome e as crises sociais açoitaram os povoados locais – os cidadãos mais favorecidos esqueceram-se de que existem os desamparados. Na verdade, voltaram-se contra eles. São estes os pormenores que, a par da situação denunciada, Kok Nam não deixou escapar. Apreciar essas obras é prazeroso, mas, igualmente, move-nos e deve mover-nos a agir.

O último adeus

Nas primeiras horas desta quinta-feira, 16 de Agosto, familiares, amigos, colegas de profissão, conhecidos e o público em geral congregaram-se no átrio dos Paços do Conselho Municipal da Cidade de Maputo imbuídos de um sentido comum: a saudade e a solidariedade.


Na Sexta-feira, 17 de Agosto, no espaço do Instituto Cultural Moçambique-Alemanha (ICMA) com o mesmo sentimento, outro grupo de cidadãos moçambicanos e não só, com toda a justeza e racionalidade, dedicaram, pelo menos, um minuto de silêncio para homenagear Nam.

Nos próximos dias, muitos acreditam e esperam que movimentos similares se tornem fecundos. No entanto, nem por isso a dura realidade com a qual nós, os moçambicanos, nos confrontamos se torna suave: Kok Nam partiu! O que, de si, nos resta são alguns fragmentos de memórias, de momentos partilhados, das suas obras invulgares que testemunham o brioso percurso que Nam, este artista da imagem na sua ampla dimensão, realizou em vida.
A morte, sempre inoportuna, mais uma vez surpreendeu-nos e devorou o nosso irmão. O célebre fotojornalista moçambicano Kok Nam abandonou a objectiva e foi-se. Quantas almas, memórias, paisagens, peripécias, histórias, mundos ele captou em vida!

Nam encontrou a morte no sábado passado, 11 de Agosto, vítima de doença. A cerimónia pública da sua homenagem e despedida final aconteceu na capital moçambicana, Maputo. Nam encontrava-se doente há vários meses, tendo recebido tratamento em Portugal e regressado a Moçambique em Dezembro último.

O seu trabalho fotojornalístico, um valioso acervo para compreender a história do país nas últimas décadas, está publicado em grandes órgãos internacionais, do português Expresso ao norte-americano The New York Times. Kok Nam deixa dois filhos, Ana Michelle e Nuno Miguel a quem, neste momento, @Verdade expressa a sua solidariedade.

Para eles, Kok Nam foi...

@Verdade saiu à rua a fim de colher a sensibilidade de alguns moçambicanos em relação ao célebre fotógrafo. Invariavelmente, as pessoas consideram que Nam foi cumulativamente um pai, amigo, irmão, professor, cidadão progressista, o último pilar de uma geração perdida.

Um humanista – Machado da Graça, jornalista


Ele cobriu de forma exemplar a história da I República de Moçambique, a que se estabelece entre a proclamação da independência e um pouco depois da morte do Presidente Samora Machel. Creio que valeria muito a pena que se fizesse uma pesquisa em volta de todas as suas obras para que o seu espólio fotográfico seja resgatado, compilado e difundido.

Ele fotografava essencialmente pessoas. As nuvens não riem, foi a sua resposta quando em determinada ocasião perguntaram-lhe o porquê de não fotografá-las.

Kok Nam preocupava-se muito com as pessoas de todos os níveis, do povo, no seu dia-a-dia e fazia o seu trabalho com um grande sentido de humanidade. Ele não foi um homem de fazer fretes no sentido de procurar realizar uma fotografia oficial que, muitas vezes, não era impactante para o trabalho de um jornal. Desviava-se de todo o tipo de acções que não diziam nada sobre a situação real do país.

Era uma personalidade engajada na transformação social porque, no seu trabalho, procurava constantemente melhorar a vida das pessoas do país.

Um pai – Naíta Ussene, fotojornalista

O Kok foi o meu mestre, um pai e um grande amigo. A sua foto ensina muito sobre o sentido da vida. Dá-nos a oportunidade de, através da imagem, percorrermos e conhecermos a realidade de Moçambique. Eu recordo-me de Kok Nam todos os dias. Em virtude da profundidade da nossa relação atribuí a um dos meus filhos, um miúdo que presentemente tem quatro anos de idade, o seu nome. Recordo-me de que Nam nunca traiu a sua máquina fotográfica, na verdade, uma Nikon analógica. Jamais utilizou um aparelho digital na produção das suas fotos.

Um progressista – Nataniel Ngomane, académico

Através do seu trabalho, Kok Nam conseguia fazer a reprodução da realidade que a sua máquina captou e impor um movimento na fotografia, uma figura estática. Ele fotografava as situações que revelavam a realidade do país. Por essa razão, a sua fotografia era progressista recusando-se, desse modo, a ser inerte.

Nos vários momentos da sua carreira, Kok enalteceu as crianças de diversos círculos sociais como forma de chamar a atenção para a necessidade do progresso. O seu desaparecimento físico instiga-nos a procurar saber mais sobre si, o seu trabalho, a realizarmos leituras nas suas obras como forma de percebermos a sua personalidade.

Para muitos moçambicanos, como o professor Nataniel Ngomane, que estiveram nas Forças Armadas, com particular destaque para os que se interessaram pela actividade jornalística produzindo a Revista 25 de Setembro e o Jornal O Combate, por exemplo, além de amigo, Kok Nam foi o instrutor que os instruiu no que toca a vários aspectos referentes à comunicação fotográfica incluindo a selecção correcta das obras que se deviam publicar.

Em resultado disso, a partir da década de 1980 em diante, Nataniel Ngomane considera que começou a encontrar na pessoa de Nam não somente um amigo como também um precursor da história do fotojornalismo moçambicano. É por essa razão que para si, no estudo do fotojornalismo moçambicano, sob o ponto de vista temático, a par de Ricardo Rangel, Kok Nam é uma figura emblemática.

Um pilar do relacionamento humano – Idasse Tembe, artista plástico

Kok Nam foi um pilar do relacionamento humano e amigo de todos. Ele não somente ensinava a fazer, como também a manter boas amizades por longos anos. Posso afirmar que no trabalho e nas relações pessoais Nam era muito didáctico. Foi um grande amigo por mais de 30 anos e nunca tivemos complicações.

As suas obras possuem algum paralelismo em relação à história de Moçambique. Ele era um homem sensível, o que lhe possibilitou mostrar a face real da nação moçambicana. Muita gente conheceu o país real através das suas fotos.

Penso que é importante que do seu percurso, da sua sensibilidade e do contínuo trabalho que realizava no sentido de ensinar as pessoas a pautar pela verdade, se aprenda algo. Sempre foi fiel aos seus ideais, os de construir e lutar pelo progresso de Moçambique.

Com ele, foi-se uma geração – Filomome Meigos, sociólogo

Estamos a observar o fim de uma geração que vincou o fotojornalismo em Moçambique. Perdemos Ricardo Rangel, Joel Chiziane e agora foi-se Kok Nam. Estamos a perder os nossos precursores. É verdade que eles transmitiram a mensagem a alguns, com destaque para Naíta Ussene, mas é a essas figuras que se deve a fundação do edifício de um fotojornalismo profundamente engajado e reivindicativo no país.

Um irmão – Elvira Viegas, Cantora

Kok Nam era uma pessoa de poucas palavras, mas com muitos conhecimentos. Ele é uma biblioteca que desapareceu, um vazio que fica no seio da família dos fotojornalistas moçambicanos. Estimava muito o Kok. Perdi um amigo e um irmão.

Os seus trabalhos, que devem ser publicados, marcam uma grande diferença no campo da sua actividade porque ele tinha uma capacidade invulgar de, através da sua máquina, captar os pormenores das situações. As suas obras fotográficas transmitem conteúdos. Por isso, penso que ele escrevia através da fotografia. Para os interessados, não só na prática da actividade fotográfica, sobretudo os jovens, é possível aprender o fotojornalismo a partir das suas obras. Para o efeito, as pessoas precisam de saber ler o que se encontra nas entrelinhas.


Construtor da nossa cultura – Yassmin Forte, fotógrafa


Vi o seu trabalho ainda muito pequena, porque ele era amigo do meu pai. Foi uma pessoa que tinha o respeito dos demais. O seu trabalho revela as peripécias que os moçambicanos viveram ao longo do tempo. Em resultado disso, Kok Nam ajudou-nos a construir a nossa cultura através das suas obras.
Acredito que a grande lição que se pode aprender de si, como pessoa, incluindo as suas obras, é amor ao próximo, muito em particular porque, nos dias actuais, nós, as pessoas, estamos mais concentradas nos bens materiais. É importante perceber que Kok acabou por ser uma escola para mim, como para as pessoas que querem aprender a trabalhar com a fotografia.
“As palavras que escrevo hoje podem não me caracterizar amanhã, mas as fotos que tiro terão sempre o mesmo sentido e significado. Descanse em paz meu compatriota”, considerou um cidadão moçambicano, Armando Bila, em Washington DC. Em tudo isso, como se pode perceber, perdeu-se um (grande) humanista. Paz à alma de Kok Nam.

*Parte essencial das citações deste texto foi extraída do livro “KOK NAM - o homem por detrás da câmara”, uma entrevista conduzida por António Cabrita.

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