“Isto
não está bom, mas já esteve muito pior. Portanto, pedia-lhes que lutassem pela
mudança das coisas no seu país. Este país merece o contributo de todos e
precisamos de gente de qualidade, independentemente de raças e credos”, Kon Nam
(1939 – 2012).
“Éramos
todos pobres. Mas isso unia-nos. E o sentimento de que a figura cimeira do
Estado era como nós e um homem de carácter moral unia-nos... Mesmo na
escassez...”, certa vez, considerou Kok em entrevista cedida ao escritor
António Cabrita referindo-se ao Presidente Samora Machel.
Ao longo
dos séculos, no decurso da milenar história da existência humana, a sabedoria
popular não podia ter sintetizado tanto conhecimento em apenas uma sentença:
Uma fotografia vale muito mais que mil palavras. Disso, as obras de Kok não são
uma excepção, são a própria regra. Além do mais esta personalidade (cujas
obras, em parte, nos atardaremos a abordar) tinha uma capacidade invulgar –
“escrever através da fotografia”, assim considera Elvira Viegas, uma célebre
cantora moçambicana. Caso contrário, este último aporte da mesma artista não
teria sentido: “As suas criações fotográficas transmitiam conteúdos”.
Perante um desafio...
persistir
Um
humanista no sentido profundo da palavra é o que as suas fotos nos revelam
sobre si. Quando soube do desastroso acontecimento, @Verdade acedeu a uma parte
do rico acervo fotográfico de Nam: são obras que nos fazem inúmeras revelações
e, invariavelmente, assumindo um carácter progressista, para denunciar uma
precariedade perante a qual nenhum cidadão moçambicano, nenhum humano, se deve
prostrar.
Seres
humanos, com próteses de diversa natureza, cujos membros do corpo da maior
parte das pessoas em alusão foram mutiladas por uma guerra infundada como, aliás,
todas as situações de luta não possuem fundamento, por ceifarem vidas humanas,
uma preciosa dádiva sem preço.
A obra em
alusão narra uma parte da nossa história, a guerra dos 16 anos. De uma ou de
outra forma, compreenda-se, o nosso objectivo não é sublimar o evento aludido,
mas a capacidade de um Homem que, com o seu olhar cúmplice, apesar de lhe terem
sido amputados os braços, decididamente enfrentou o desafio de ir à escola,
esta instituição discriminatória, de modo que seguramente pudesse fazer frente
aos desafios de um futuro indubitavelmente incerto. Esse Homem, longe de
quaisquer metáforas, é um moçambicano.
Na referida
obra, o rapaz que se deixou captar por Nam, além de assumir-se um exemplo a ser
seguido, insiste em emitir um conselho secular: perante um desafio, uma
dificuldade, o ser humano deve persistir e lutar pelos seus ideais de modo que
possa transformar a realidade em seu benefício.
Último
recurso
Se nós,
movidos e inspirados pela sensibilidade humanística de Nam, consideramos que a
luta armada, em resultado de muitas vezes eliminar vidas humanas, é algo sem
fundamento, perante as suas obras percebemos que não é bem assim: os ataques
militares são o último recurso que um povo ao qual se recusa o direito nato da
liberdade, recorre para contrariar a opressão. É essa a imagem que, mais
uma vez, o olhar cúmplice de dois soldados, sentados numa estrutura que nos
recorda uma trincheira, emite.
Num
conflito há esperança. Uma expectativa de, contornando todos os riscos
conhecidos incluindo a perda da vida, o soldado sair imune e, por via disso,
libertar o povo pelo qual guerreia.
Reconstruir
Ainda que
na mais nobre literatura, ou seja, o livro de todos os tempos, a Bíblia, se
considere que a verdade é o princípio da liberdade, se consideramos que para
algumas pessoas, para determinados regimes e/ou ou sistemas de governação,
certas verdades são uma espinha aguçada no coração, determinadas obras
fotográficas não poderiam ter sido realizadas. Estas fotos denunciam
ocorrências maléficas incluindo os seus praticantes, os prevaricadores.
Seja como
for, se aceitarmos que as obras de Nam são um viveiro de várias qualidades
didácticas, o que não constitui nenhuma falsidade, então é verdade que ao
realizar uma outra foto, num lugar incerto para muitos moçambicanos, mostrando
um conjunto de jovens a (re)construir o país, ganharemos a consciência de que a
edificação de uma nação estável, em quase todas as dimensões, é tarefa de todos
os moçambicanos e não da boa vontade dos doadores internacionais com os seus
favores. Em resultado disso, trabalharemos.
É
interessante notar que as fotos de Nam registaram os momentos belos e
conturbados do percurso do nosso país. No entanto, mesmos as que revelam os
mágoas dos tempos, o aspecto estético, o belo que se conserva em si não se
deixa esfumar pela melancolia do conteúdo que possuem. É nesse prisma que um
comentário de Nam ganha um amplo sentido didáctico-pedagógico, mas também de
expressão do amor ao próximo:
“Toda a
gente tem um lado bonito, se eu estou a olhar para si e acho que é uma pessoa
bonita a imagem sai bonita, luminosa, se olho para si e se a sua imagem é
negativa para mim, e há algo em si que me repele, a fotografia sai frouxa,
sombreada, sem impacto”.
Há fome na Zambézia
Diante das
fotos de Nam, o leitor não precisa de possuir um elevado grau de escolaridade
como condição de/para compreender as denúncias que o autor faz. As obras
despertam no âmago da pessoa que as vê uma série de sentimentos – repúdio em
relação à situação, empatia para com as vítimas, e, por fim, um convite para a
acção –, para a necessidade de contribuir para que a realidade sofra alguma
transformação social favorável.
Em
resultado de algumas indicações, sob o ponto de vista de informação, que
portamos, nós decidimos considerar que há fome na Zambézia, mas podia ser em
qualquer outro lugar. Essa se calhar seja uma maneira de sintetizar uma série
de acontecimentos negativos – má nutrição, anorexia, conflitos no seio da
família, desrespeito, prostituição, criminalidade, mendicidade, etc. – que
derivam da escassez de víveres.
Esse olhar
desesperado de uma idosa que, pacificamente, se deixou captar acompanhada de um
conjunto de crianças curiosas (com um destino incerto) para as quais de escola,
sapato, camisa, peixe, etc., só se fala para que, no mínimo, tenham a ideia da
existência de tais realidades transmitem mensagens: os senhores não
podem/devem permanecer inertes e permitir que esta mágoa se perpetue.
Mas,
infelizmente, em contra-senso, as fotos de Nam também nos revelaram que a nossa
sociedade se está a edificar com base em alicerces da descriminação e da
indiferença. Na cidade de Chimoio – outra urbe em que nos anos de 1980/90 a
fome e as crises sociais açoitaram os povoados locais – os cidadãos mais favorecidos
esqueceram-se de que existem os desamparados. Na verdade, voltaram-se contra
eles. São estes os pormenores que, a par da situação denunciada, Kok Nam não
deixou escapar. Apreciar essas obras é prazeroso, mas, igualmente, move-nos e
deve mover-nos a agir.
O último adeus
Nas primeiras horas
desta quinta-feira, 16 de Agosto, familiares, amigos, colegas de profissão,
conhecidos e o público em geral congregaram-se no átrio dos Paços do Conselho
Municipal da Cidade de Maputo imbuídos de um sentido comum: a saudade e a
solidariedade.
Na
Sexta-feira, 17 de Agosto, no espaço do Instituto Cultural Moçambique-Alemanha
(ICMA) com o mesmo sentimento, outro grupo de cidadãos moçambicanos e não só,
com toda a justeza e racionalidade, dedicaram, pelo menos, um minuto de
silêncio para homenagear Nam.
Nos
próximos dias, muitos acreditam e esperam que movimentos similares se tornem
fecundos. No entanto, nem por isso a dura realidade com a qual nós, os
moçambicanos, nos confrontamos se torna suave: Kok Nam partiu! O que, de si,
nos resta são alguns fragmentos de memórias, de momentos partilhados, das suas
obras invulgares que testemunham o brioso percurso que Nam, este artista da
imagem na sua ampla dimensão, realizou em vida.
A morte,
sempre inoportuna, mais uma vez surpreendeu-nos e devorou o nosso irmão. O
célebre fotojornalista moçambicano Kok Nam abandonou a objectiva e foi-se.
Quantas almas, memórias, paisagens, peripécias, histórias, mundos ele captou em
vida!
Nam
encontrou a morte no sábado passado, 11 de Agosto, vítima de doença. A
cerimónia pública da sua homenagem e despedida final aconteceu na capital
moçambicana, Maputo. Nam encontrava-se doente há vários meses, tendo recebido
tratamento em Portugal e regressado a Moçambique em Dezembro último.
O seu
trabalho fotojornalístico, um valioso acervo para compreender a história do
país nas últimas décadas, está publicado em grandes órgãos internacionais, do
português Expresso ao norte-americano The New York Times. Kok Nam deixa dois
filhos, Ana Michelle e Nuno Miguel a quem, neste momento, @Verdade expressa a
sua solidariedade.
Para
eles, Kok Nam foi...
@Verdade
saiu à rua a fim de colher a sensibilidade de alguns moçambicanos em relação ao
célebre fotógrafo. Invariavelmente, as pessoas consideram que Nam foi
cumulativamente um pai, amigo, irmão, professor, cidadão progressista, o último
pilar de uma geração perdida.
Um humanista – Machado
da Graça, jornalista
Ele cobriu
de forma exemplar a história da I República de Moçambique, a que se estabelece
entre a proclamação da independência e um pouco depois da morte do Presidente
Samora Machel. Creio que valeria muito a pena que se fizesse uma pesquisa em
volta de todas as suas obras para que o seu espólio fotográfico seja resgatado,
compilado e difundido.
Ele
fotografava essencialmente pessoas. As nuvens não riem, foi a sua
resposta quando em determinada ocasião perguntaram-lhe o porquê de não
fotografá-las.
Kok Nam
preocupava-se muito com as pessoas de todos os níveis, do povo, no seu
dia-a-dia e fazia o seu trabalho com um grande sentido de humanidade.
Ele não foi um homem de fazer fretes no sentido de procurar realizar uma
fotografia oficial que, muitas vezes, não era impactante para o trabalho de um
jornal. Desviava-se de todo o tipo de acções que não diziam nada sobre a
situação real do país.
Era uma
personalidade engajada na transformação social porque, no seu trabalho,
procurava constantemente melhorar a vida das pessoas do país.
Um pai –
Naíta Ussene, fotojornalista
O Kok
foi o meu mestre, um pai e um grande amigo. A sua foto ensina muito sobre o
sentido da vida. Dá-nos a oportunidade de, através da imagem, percorrermos e
conhecermos a realidade de Moçambique. Eu recordo-me de Kok Nam todos os dias.
Em virtude da profundidade da nossa relação atribuí a um dos meus filhos, um
miúdo que presentemente tem quatro anos de idade, o seu nome. Recordo-me de que
Nam nunca traiu a sua máquina fotográfica, na verdade, uma Nikon analógica.
Jamais utilizou um aparelho digital na produção das suas fotos.
Um progressista
– Nataniel Ngomane, académico
Através do
seu trabalho, Kok Nam conseguia fazer a reprodução da realidade que a sua
máquina captou e impor um movimento na fotografia, uma figura estática. Ele
fotografava as situações que revelavam a realidade do país. Por essa razão, a
sua fotografia era progressista recusando-se, desse modo, a ser inerte.
Nos vários
momentos da sua carreira, Kok enalteceu as crianças de diversos círculos
sociais como forma de chamar a atenção para a necessidade do progresso. O
seu desaparecimento físico instiga-nos a procurar saber mais sobre si, o seu
trabalho, a realizarmos leituras nas suas obras como forma de percebermos a sua
personalidade.
Para muitos
moçambicanos, como o professor Nataniel Ngomane, que estiveram nas Forças
Armadas, com particular destaque para os que se interessaram pela actividade
jornalística produzindo a Revista 25 de Setembro e o Jornal O Combate, por
exemplo, além de amigo, Kok Nam foi o instrutor que os instruiu no que toca a
vários aspectos referentes à comunicação fotográfica incluindo a selecção
correcta das obras que se deviam publicar.
Em
resultado disso, a partir da década de 1980 em diante, Nataniel Ngomane
considera que começou a encontrar na pessoa de Nam não somente um amigo como
também um precursor da história do fotojornalismo moçambicano. É por essa razão
que para si, no estudo do fotojornalismo moçambicano, sob o ponto de vista
temático, a par de Ricardo Rangel, Kok Nam é uma figura emblemática.
Um pilar
do relacionamento humano – Idasse Tembe, artista plástico
Kok Nam
foi um pilar do relacionamento humano e amigo de todos. Ele não somente
ensinava a fazer, como também a manter boas amizades por longos anos. Posso
afirmar que no trabalho e nas relações pessoais Nam era muito didáctico. Foi um
grande amigo por mais de 30 anos e nunca tivemos complicações.
As suas
obras possuem algum paralelismo em relação à história de Moçambique. Ele era
um homem sensível, o que lhe possibilitou mostrar a face real da nação
moçambicana. Muita gente conheceu o país real através das suas fotos.
Penso que é
importante que do seu percurso, da sua sensibilidade e do contínuo trabalho que
realizava no sentido de ensinar as pessoas a pautar pela verdade, se aprenda
algo. Sempre foi fiel aos seus ideais, os de construir e lutar pelo progresso
de Moçambique.
Com ele,
foi-se uma geração – Filomome Meigos, sociólogo
Estamos a
observar o fim de uma geração que vincou o fotojornalismo em Moçambique.
Perdemos Ricardo Rangel, Joel Chiziane e agora foi-se Kok Nam. Estamos a perder
os nossos precursores. É verdade que eles transmitiram a mensagem a alguns, com
destaque para Naíta Ussene, mas é a essas figuras que se deve a fundação do
edifício de um fotojornalismo profundamente engajado e reivindicativo no país.
Um irmão
– Elvira Viegas, Cantora
Kok Nam era
uma pessoa de poucas palavras, mas com muitos conhecimentos. Ele é uma
biblioteca que desapareceu, um vazio que fica no seio da família dos
fotojornalistas moçambicanos. Estimava muito o Kok. Perdi um amigo e um
irmão.
Os seus trabalhos, que
devem ser publicados, marcam uma grande diferença no campo da sua actividade
porque ele tinha uma capacidade invulgar de, através da sua máquina, captar os
pormenores das situações. As suas obras fotográficas transmitem conteúdos.
Por isso, penso que ele escrevia através da fotografia. Para os
interessados, não só na prática da actividade fotográfica, sobretudo os jovens,
é possível aprender o fotojornalismo a partir das suas obras. Para o efeito, as
pessoas precisam de saber ler o que se encontra nas entrelinhas.
Construtor da nossa
cultura – Yassmin Forte, fotógrafa
Vi o seu
trabalho ainda muito pequena, porque ele era amigo do meu pai. Foi uma pessoa
que tinha o respeito dos demais. O seu trabalho revela as peripécias que os
moçambicanos viveram ao longo do tempo. Em resultado disso, Kok Nam ajudou-nos
a construir a nossa cultura através das suas obras.
Acredito
que a grande lição que se pode aprender de si, como pessoa, incluindo as suas
obras, é amor ao próximo, muito em particular porque, nos dias actuais, nós, as
pessoas, estamos mais concentradas nos bens materiais. É importante perceber
que Kok acabou por ser uma escola para mim, como para as pessoas que querem
aprender a trabalhar com a fotografia.
“As
palavras que escrevo hoje podem não me caracterizar amanhã, mas as fotos que
tiro terão sempre o mesmo sentido e significado. Descanse em paz meu
compatriota”, considerou um cidadão moçambicano, Armando Bila, em Washington
DC. Em tudo isso, como se pode perceber, perdeu-se um (grande) humanista. Paz à
alma de Kok Nam.
*Parte essencial das
citações deste texto foi extraída do livro “KOK NAM - o homem por detrás da
câmara”, uma entrevista conduzida por António Cabrita.
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