quinta-feira, 16 de março de 2017

O Festival Marrabenta é um momento de ode à moçambicanidade – Paulo D. Sithoe

Criado em 2008, pouco depois de se instalar no país a nova onda da música jovem, o Pandza e Dzukuta, que teimava a abafar o estilo musical que, até então, se confundia com o nome do país e os seus fazedores, a Marrabenta, em 2017, o Festival Marrabenta realizou-se pela décima vez ininterrupta, entre dois e cinco de Fevereiro, em Maputo. Sua meta, na ocasião, era resgatar famigerado género musical que também é dança.
A Zambique-Li, entidade mentora, assume que nos dias e nos locais onde o evento evolui, a Marrabenta confunde-se com um momento de ode à moçambicanidade, como acontece quando se celebra o Dia da Independência. “O Festival Marrabenta é uma ocasião de ode do que é nosso. O momento de o macua saber que a Marrabenta também lhe pertence”, refere Paulo David Sithoe quem dirigem a iniciativa, assumindo a pretensão de a mesma nos conduzir a uma espécie de Dia da Independência das Artes.
Além de contribuir para, através dessa realização periódica, se retecer os motivos do ritualismo cultural dos moçambicanos, existe a intenção de se tornar o Festival Marrabenta na maior razão para que gente do mundo possa vir conhecer Moçambique e tudo de melhor que possui. Sobre estas e outras ideias – o turismo cultural, a influência do festival na ‘indústria cultural’ e na economia local – conversámos com Paulo David a quem começamos por perguntar:   


Recorda-se da motivação que instigou a criação do Festival Marrabenta?
Na verdade tínhamos uma vontade de resgatar a Marrabenta. Dignamente influenciados pelos seus amantes, na época, Malangatana, David Macuácua, Dilon Djindji, entre outros, estávamos à procura dos fundamentos da música ligeira moçambicana, a fim de potencializar a Marrabenta. É preciso entender que os anos 2005 – 2008 assinalaram o auge da profusão do Pandza e do Dzukuta.

Nos 10 anos que se assinalam, quais são as memórias mais relevantes?
É uma pergunta que vale um milhão, porque foram muitos acontecimentos que gerariam uma resposta longa. Podemos começar por citar o primeiro dia, o momento do arranque, o discurso do mestre Malangatana em Matalane. Realizar o festival naquele lugar foi extraordinário e emocionou a todos. Foi marcante a primeira vez em que saímos de Maputo para Marracuene, usando um comboio gratuito.
A nossa primeira saída com o Festival Marrabenta de Maputo para a província de Gaza, onde celebramos o aniversário de Moisés Ribeiro da Conceição Mandlate (nascido em 1920), na Praça Ngungunhana, em Chibuto, assinalou um dos últimos momentos do Moisés a tocar guitarra em público.
Impulsionámos o surgimento de iniciativas independentes como a celebração de 2010 Ano da Marrabenta. Tivemos acesso aos autocarros da empresa Transportes Públicos de Maputo, ostentando o ‘branding’ “A Marrabenta é Daqui”, circulando dia após dia ao serviço do Festival, porque influenciamos decisões nesse sentido.
É complicado narrar um momento específico, porque, por exemplo, as viagens no Comboio-Marrabenta com os aristas estão inserias dentro de um grande momento que é o Festival Marrabenta.   
De qualquer modo, o que verdadeiramente nos marcou foi o envolvimento com as pessoas. Cada uma em cada momento. As performances de cada artista na sua circunstância. Na esteira disso, podemos citar a realização, na quinta edição, do musical Marrabenta, onde resgatamos o texto “As Trinta Mulheres de Muzilene”, emblemático na história do Teatro Moçambicano, uma experiência completamente humana do melhor que realizámos. 

Também tivemos momentos que nos marcaram negativamente como o insucesso do festival na cidade da Beira. Ao longo do ‘caminho’, perdemos amigos para a morte como são os exemplos de Tony Django, Vítor Bernardo e Alberto Mhula.

Como foi lidar com o público patrocinador?  
A relação do Festival Marrabenta com a Moçambique Celular (mCel) foi um casamento natural no sentido de que a linha de comunicação de valores que a mCel defende está muito alinhada com a nossa perspetiva de moçambicanidade, de resgate de valores identitários e da promoção das nossas artes e cultura. Disso as campanhas de comunicação da mCel são prova.   
Tivemos poucos problemas para convencer a mCel a ser o patrocinador principal, ainda que nalguns momentos agindo de forma célere que noutros; nalgumas ocasiões com um patrocínio melhor que noutros. A nossa relação com a mCel, o BCI e, principalmente, com a empresa Caminhos-de-ferro de Moçambique sempre foi muito boa, porque ceder um comboio para a utilização pública gratuitamente não é uma acção comum, sobretudo quando se leva em conta os custos envolvidos numa operação destas. É fácil lidar com os mecenas quando têm objectivos comuns com a entidade promotora do evento e o assunto que este trata. A nossa plataforma tem a capacidade de elevar o mecenas ao estatuto em que quer estar. Os nossos mecenas não trabalham connosco na dimensão de apoio de misericórdia. Estamos na situação de ganhos mútuos para as partes envolvidas. Nós agregamos valor aos mecenas assim como eles agregam a nós realizadores de eventos culturais, porque nós carregamos a sua marca. 

Existe um entendimento generalizado sobre a importância do patrocínio entre os públicos envolvidos?
Na conjuntura da economia de mercado em que estamos, esse entendimento é muito ligado às estratégias de comunicação e marketing. Para a economia da cultura é viável trabalhar numa perspectiva de comunicação e valorização dos produtos do mecenas, do que o mecenas apoiar simplesmente a iniciativa cultural. Vejo mais o mecenas no apoio a movimentos associativos com um forte impacto sociocultural sem nenhum ‘income’, o que não é exactamente o que nós fazemos. Nós realizamos um casamento das duas realidades. Porém, vejo o casamento entre o interesse estratégico do mecenas em termos de comunicação e marketing com o sector da economia cultural.

Como se têm tratado as iniciativas que, tendo relevância social, não se enquadram no cliché da comunicação mercadológica?
O nosso país criou uma fórmula de entender as organizações que não têm fins lucrativos, enquadrando-as no campo do associativismo. As iniciativas feitas por um grupo de associados ‘deveriam’ ser automaticamente abrangidas pelo mecenato.
Vivemos num país com uma conjuntura em que o mecenas têm uma série de assuntos básicos do dia-a-dia da pessoa, de que se deveria interessar antes de chegar ao apoio às artes.
Seria mais simples ver os mecenas unidos para resolver problemas das comunidades onde suas organizações estão inseridas, apoiando, por exemplo, a construção de uma drenagem no bairro da Liberdade para que as populações melhorem as condições de saúde – antes de o sector das artes e cultura beneficiar desse apoio (sem que isso signifique que esta área é menos relevante). O que pretendo dizer é que nós do sector das artes temos a capacidade de fazer o mecenas chegar ao seu público e transmitir a sua informação. Potenciamos os mecenas para que possam ser rentáveis e produzam os salários dos seus trabalhadores e, por consequência, apoiar-nos a nós da área criativa do que o contrário.

Que indicadores são relevantes quando se discute o impacto socioeconómico do Festival Marrabenta, considerando os pilares que o enformam?
É completamente complicado criar indicadores de medição que nos possam dar essa informação, porque a nossa actividade está misturada com outras. Quando eu vendo CDs da Marrabenta actuo no lado de Indústria e Comércio. Todas as vendas que fazemos no contexto do Festival Marrabenta recaem nas estatísticas da comida e bebida ou do transporte. Nós induzimos a elevação dos dados de outros sectores da economia.
Falando dos artistas em particular, analisando os seus ‘incomes’ anuais, podemos perceber o que é que se gera para eles. Ao longo destes anos, se falarmos de grandes iniciativas como o Festival Marrabenta, podemos quantificar aquilo que se gastou no sector, ainda assim é difícil que tenhamos dados concretos. Nós temos dados de venda da bilheteira, porém carecemos de informações sobre o consumo de bens nos diferentes espaços em que nossa caravana passa. As nossas estatísticas estão camufladas noutros sectores induzidos pela nossa área.
Por exemplo, se falamos do Gwaza Muthini, os dados das feiras e jardins – no sentido do pelouro que, no distrito de Marracuene, lida com a indústria e comércio – é que ficam com essa informação em termos de retorno, sobretudo porque o nosso Festival tem uma grade componente de eventos gratuitos.
É fácil medir o impacto do turismo cultural em termos de ocupação de espaços hoteleiros, mas é difícil perceber se essa ocupação foi induzida por uma obra de arte de um determinado artista disponível naquele hotel, a não ser que se façam pesquisas específicas para saber as razões que moveram os turistas a alojarem-se num determinado espaço.

A MARRABENTA É O RITUAL DOS MOÇAMBICANOS

Até que ponto o festival enraíza a Marrabenta na bacia semântica da identidade moçambicana?
Primeiro é necessário na vivência dos homens que tenhamos momentos de exaltação de algo. Em termos de Marrabenta e de música popular moçambicana, o Festival Marrabenta é o ponto mais alto da exaltação da nossa cultura, pelo facto de, num período alargado, envolver-se uma grande quantidade de gente em vários espaços a reflectir sobre a nossa identidade, nossa musicalidade, incluindo histórias de pessoas e do país.   
Como humanos, anualmente, celebramos o nosso aniversário, fazemos a nossa missa, rezamos a hora A, e, nesse sentido, somos seres ritualizados. Com todo o respeito em relação aos outros, o momento do Festival Marrabenta é ritualístico para o povo moçambicano ou, pelo menos, pretendemos que seja isso, um momento ritualístico como o Dia da Água ou da Independência, porque olhamos para nós mesmos, geração actual, velha e futura geração; falamos sobre como se dança e não se dança; como se canta e não se canta; no fundo reflectimos em torno da nossa vivência.
Em 2017, alargamos a fasquia dessa reflexão levando o Festival Marrabenta à praia da Costa do Sol, onde se encontra a nossa gastronomia marinha, porque estamos a dizer que se a nossa identidade é o camarão, come-se neste e naquele lugar. Estamos a dizer ainda que Fevereiro, enquanto um momento de ritual, já não é nosso apenas. Pertence àqueles que consomem o sumo de canhum; à celebração do Dia do Heróis Moçambicanos e da Batalha de Gwaza Muthini; pertence àquele que gostam daquilo que é propriamente moçambicano; um dia se tornará o Dia da Independência das Artes.
O Festival Marrabenta é uma ocasião de ode do que é nosso. O momento de o macua saber que a Marrabenta também lhe pertence.

De que modo o Festival influencia a indústria cultural local?
São poucos os momentos em que tantos artistas, músicos e instrumentistas, preparam-se para trabalhar em temas moçambicanos como princípio. Ainda que nós buscamos trabalhos acabados, esses profissionais depois multiplicam as suas obras. Esse processo é evolutivo. Por exemplo, nestes 10 anos, conseguimos trabalhar com artistas como Azagaia e Jimmy Dludlu, numa altura que ainda não tínhamos visto um concerto de ambos – jazzman e rapper, respectivamente – a fazer Marrabenta.
Influenciamos a indústria cultural através da nossa capacidade de realizar um evento propriamente moçambicano. Para uma indústria funcionar é necessário que haja uma matriz de comparação como acontece com as feiras da indústria automóvel.  
O festival Marrabenta é um evento que, comparado aos outros, tem a importância de quebrar a barreira do espaço entre uma geração e outra, contribuindo para a produção de conteúdos, compilações e colaborações. A criação de conteúdos é o combustível da indústria cultural. Se não se induz à criação, a indústria de criação morre. Porém, cria-se mais colaborado.

A escolha da praia para acolher a décima edição é casual ou intencional?
É uma escolha altamente intencional, porque nós somos mais fortes quando estamos alinhados, como o ‘slogan’ da mCel diz: ‘a vida é melhor quando estamos juntos’. Ao realizar uma iniciativa da grandeza do Festival Marrabenta temos que estar verdadeiramente alinhados como um país. Alinhados aos valores da moçambicanidade, e das nossas perspectivas e expectativas como sector da cultura. A nossa direcção como sector da cultura é um casamento entre o sector das artes e cultura com o turismo. É um turismo cultural virado ao conhecimento da moçambicanidade. O turismo cultural não significa colocar uma estátua num quarto de hotel e alguém ir ocupar – só por isso. É preciso conhecer os lugares de Moçambique, as suas gentes, as condições da sua vivência e apreciar isso.
Então, no alinhamento de todos nós – um grupo de pessoas que estudou o fenómeno para gerar esta energia – entendemos que esta pode ser a fórmula: da mesma forma que eu quero que se acredite em mim quando se vai ao Festival Marrabenta, eu tento acreditar no que os outros moçambicanos pensaram.
Para que o palco do Festival Marrabenta ocupasse a praia da Costa do Sol, houve um esforço de todos nós para ampliar o seu espaço ao reabilitá-lo, criando uma potencialidade para a sua utilização. Construiu-se o Mercado do Peixe. Reservou-se uma zona de artesanato, incluindo um parque de estacionamento.

A MARRABENTA É O MOTIVO PARA SE CONHECER MOÇAMBIQUE

Que significado tem esta atitude para a postura que o festival quer assumir?
Na verdade, aceitamos um desafio. Entendemos o esforço que está a ser feito para dar vida as nossas potencialidades naturais. O Festival Marrabenta segue a direcção da sustentabilidade e promoção geral de Moçambique, em particular a cidade de Maputo – através da Marrabenta – para dentro e fora do país, a fim de que quem não conhece a Marrabenta passe a conhecer. Além de exportar, vamos fazer um trabalho virado para gente mais nova.
Nesses 10 anos, muitos de nós criamos novas raízes. Desde o princípio até esta parte, não estávamos muito preocupados com as pessoas que não conheciam a Marrabenta. Nossa preocupação era o resgate daquilo que sabíamos existir – mas que estava a ser perdido. Uma vez que conseguimos atingir esse objectivo, agora estamos focados naqueles que não conhecem a Marrabenta.
Queremos elevar este festival e a Marrabenta na maior razão para gente vir a Moçambique conhecer o que de melhor temos. Será uma porta de entrada para se conhecer o resto. Este movimento que acontece em torno da Marrabenta tem que ser uma razão – na região e no mundo – para alguém pegar no carro e sair da Suazilândia para Moçambique, ver o festival e passar alguns dias no país; para que as pessoas do mundo que queiram conhecer Moçambique, possam vir na época do Festival Marrabenta.

Em 10 anos, a sustentabilidade do festival é uma realidade ou um desafio?
O festival é feito de três pilares: o público, a técnica e os artistas. Deve haver balanço entre elas para que estas componentes tenham sustentabilidade. Em termos de público, a sustentabilidade seria a capacidade de o festival comunicar naturalmente para as pessoas aderirem ao evento; a sustentabilidade técnica tem a ver com os meios e a capacidade de garantir a sua existência; a disponibilidade dos artistas é uma parte pesada que, como a técnica, exige que se envolva os mecenas culturais para cobrir os custos.
O festival é sustentável porque a parte técnica está totalmente garantida. Internamente, conseguimos gerar as condições técnicas para que o evento aconteça. Ou seja, o que podia impossibilitar a realização do festival está resolvido, pouco importando se iremos envolver um ou dois artistas, actuando em acústico, num pequeno ou grande palco. Esta sustentabilidade foi gerada através da confiança dos artistas e as equipas de produção, o que faz com que durante o ano a gente produza o suficiente para ter a certeza de que os artistas estarão lá a todo o custo.
Geramos sustentabilidade nesse sentido, ainda assim nós não somos autossuficientes. Podemos fazer um festival firme, mas ele não é autossuficiente no sentido de andar com os próprios pés. Ele depende e precisa do apoio de pessoas de todos os sectores possíveis e imagináveis, principalmente do público.

Pode-se referir ao maior legado do Festival Marrabenta?
O maior de todos é que a iniciativa existe. A capacidade de fazer outra pessoa sonhar – saber que pode começar um festival de nyau que pode atingir 10 anos. Nós criámos o Festival Marrabenta sem história de evento similar com mais de 10 anos, além do Festival de Canto e Dança que se tornou Festival Nacional de Cultura. Portanto, o simples facto de haver um festival que acontece periodicamente dá azo para que outras pessoas possam sonhar em realizar algo similar.


2 comentários:

  1. Não vejo a hora do mesmo, será que haveremos de lá nos ver novamente?
    Espero bem que sim.

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