Criado
em 2008, pouco depois de se instalar no país a nova onda da música jovem, o
Pandza e Dzukuta, que teimava a abafar o estilo musical que, até então, se
confundia com o nome do país e os seus fazedores, a Marrabenta, em 2017, o Festival
Marrabenta realizou-se pela décima vez ininterrupta, entre dois e cinco de
Fevereiro, em Maputo. Sua meta, na ocasião, era resgatar famigerado género
musical que também é dança.
A
Zambique-Li, entidade mentora, assume que nos dias e nos locais onde o evento
evolui, a Marrabenta confunde-se com um momento de ode à moçambicanidade, como
acontece quando se celebra o Dia da Independência. “O Festival Marrabenta é uma
ocasião de ode do que é nosso. O momento de o macua saber que a Marrabenta
também lhe pertence”, refere Paulo David Sithoe quem dirigem a iniciativa,
assumindo a pretensão de a mesma nos conduzir a uma espécie de Dia da
Independência das Artes.
Além de contribuir para, através dessa
realização periódica, se retecer os motivos do ritualismo cultural dos
moçambicanos, existe a intenção de se tornar o Festival Marrabenta na maior
razão para que gente do mundo possa vir conhecer Moçambique e tudo de melhor
que possui. Sobre estas e outras ideias – o turismo cultural, a influência do
festival na ‘indústria cultural’ e na economia local – conversámos com Paulo
David a quem começamos por perguntar:
Recorda-se
da motivação que instigou a criação do Festival Marrabenta?
Na verdade tínhamos uma vontade de
resgatar a Marrabenta. Dignamente influenciados pelos seus amantes, na época, Malangatana,
David Macuácua, Dilon Djindji, entre outros, estávamos à procura dos
fundamentos da música ligeira moçambicana, a fim de potencializar a Marrabenta. É preciso entender que os anos 2005 – 2008
assinalaram o auge da profusão do Pandza e do Dzukuta.
Nos
10 anos que se assinalam, quais são as memórias mais relevantes?
É uma pergunta que vale um milhão,
porque foram muitos acontecimentos que gerariam uma resposta longa. Podemos
começar por citar o primeiro dia, o momento do arranque, o discurso do mestre Malangatana
em Matalane. Realizar o festival naquele lugar foi extraordinário e emocionou a
todos. Foi marcante a primeira vez em que saímos de Maputo para Marracuene,
usando um comboio gratuito.
A nossa primeira saída com o Festival
Marrabenta de Maputo para a província de Gaza, onde celebramos o aniversário de
Moisés Ribeiro da Conceição Mandlate (nascido em 1920), na Praça Ngungunhana,
em Chibuto, assinalou um dos últimos momentos do Moisés a tocar guitarra em
público.
Impulsionámos o surgimento de iniciativas
independentes como a celebração de 2010 Ano da Marrabenta. Tivemos acesso aos
autocarros da empresa Transportes Públicos de Maputo, ostentando o ‘branding’ “A
Marrabenta é Daqui”, circulando dia após dia ao serviço do Festival, porque influenciamos
decisões nesse sentido.
É complicado narrar um momento
específico, porque, por exemplo, as viagens no Comboio-Marrabenta com os
aristas estão inserias dentro de um grande momento que é o Festival Marrabenta.
De qualquer modo, o que verdadeiramente
nos marcou foi o envolvimento com as pessoas. Cada uma em cada momento. As
performances de cada artista na sua circunstância. Na esteira disso, podemos
citar a realização, na quinta edição, do musical Marrabenta, onde resgatamos o
texto “As Trinta Mulheres de Muzilene”, emblemático na história do Teatro Moçambicano,
uma experiência completamente humana do melhor que realizámos.
Também tivemos momentos que nos
marcaram negativamente como o insucesso do festival na cidade da Beira. Ao
longo do ‘caminho’, perdemos amigos para a morte como são os exemplos de Tony
Django, Vítor Bernardo e Alberto Mhula.
Como
foi lidar com o público patrocinador?
A relação do Festival Marrabenta com a
Moçambique Celular (mCel) foi um casamento natural no sentido de que a linha de
comunicação de valores que a mCel defende está muito alinhada com a nossa
perspetiva de moçambicanidade, de resgate de valores identitários e da promoção
das nossas artes e cultura. Disso as campanhas de comunicação da mCel são prova.
Tivemos poucos problemas para convencer
a mCel a ser o patrocinador principal, ainda que nalguns momentos agindo de
forma célere que noutros; nalgumas ocasiões com um patrocínio melhor que
noutros. A nossa relação com a mCel, o BCI e, principalmente, com a empresa Caminhos-de-ferro
de Moçambique sempre foi muito boa, porque ceder um
comboio para a utilização pública gratuitamente não é uma acção comum,
sobretudo quando se leva em conta os custos envolvidos numa operação destas.
É fácil lidar com os mecenas quando têm objectivos comuns com a entidade
promotora do evento e o assunto que este trata. A nossa plataforma tem a
capacidade de elevar o mecenas ao estatuto em que quer estar. Os nossos mecenas não trabalham connosco na dimensão de apoio
de misericórdia. Estamos na situação de ganhos mútuos para as partes
envolvidas. Nós agregamos valor aos mecenas assim como eles agregam a
nós realizadores de eventos culturais, porque nós carregamos a sua marca.
Existe
um entendimento generalizado sobre a importância do patrocínio entre os
públicos envolvidos?
Na conjuntura da economia de mercado em
que estamos, esse entendimento é muito ligado às estratégias de comunicação e
marketing. Para a economia da cultura é viável
trabalhar numa perspectiva de comunicação e valorização dos produtos do
mecenas, do que o mecenas apoiar simplesmente a iniciativa cultural.
Vejo mais o mecenas no apoio a movimentos associativos com um forte impacto
sociocultural sem nenhum ‘income’, o
que não é exactamente o que nós fazemos. Nós realizamos um casamento das duas
realidades. Porém, vejo o casamento entre o interesse estratégico do mecenas em
termos de comunicação e marketing com o sector da economia cultural.
Como
se têm tratado as iniciativas que, tendo relevância social, não se enquadram no
cliché da comunicação mercadológica?
O nosso país criou uma fórmula de
entender as organizações que não têm fins lucrativos, enquadrando-as no campo
do associativismo. As iniciativas feitas por um grupo
de associados ‘deveriam’ ser automaticamente abrangidas pelo mecenato.
Vivemos num
país com uma conjuntura em que o mecenas têm uma série de assuntos básicos do
dia-a-dia da pessoa, de que se deveria interessar antes de chegar ao apoio às
artes.
Seria mais simples ver os mecenas
unidos para resolver problemas das comunidades onde suas organizações estão
inseridas, apoiando, por exemplo, a construção de uma drenagem no bairro da
Liberdade para que as populações melhorem as condições de saúde – antes de o
sector das artes e cultura beneficiar desse apoio (sem que isso signifique que
esta área é menos relevante). O que pretendo dizer é que nós do sector das
artes temos a capacidade de fazer o mecenas chegar ao seu público e transmitir
a sua informação. Potenciamos os mecenas para que possam ser rentáveis e
produzam os salários dos seus trabalhadores e, por consequência, apoiar-nos a
nós da área criativa do que o contrário.
Que
indicadores são relevantes quando se discute o impacto socioeconómico do
Festival Marrabenta, considerando os pilares que o enformam?
É completamente complicado criar
indicadores de medição que nos possam dar essa informação, porque a nossa
actividade está misturada com outras. Quando eu vendo CDs da Marrabenta actuo
no lado de Indústria e Comércio. Todas as vendas que fazemos no contexto do
Festival Marrabenta recaem nas estatísticas da comida e bebida ou do
transporte. Nós induzimos a elevação dos dados de outros sectores da economia.
Falando dos artistas em particular,
analisando os seus ‘incomes’ anuais, podemos perceber o que é que se gera para
eles. Ao longo destes anos, se falarmos de grandes iniciativas como o Festival
Marrabenta, podemos quantificar aquilo que se gastou no sector, ainda assim é
difícil que tenhamos dados concretos. Nós temos dados de venda da bilheteira,
porém carecemos de informações sobre o consumo de bens nos diferentes espaços
em que nossa caravana passa. As nossas estatísticas estão camufladas noutros
sectores induzidos pela nossa área.
Por exemplo, se falamos do Gwaza
Muthini, os dados das feiras e jardins – no sentido do pelouro que, no distrito
de Marracuene, lida com a indústria e comércio – é que ficam com essa
informação em termos de retorno, sobretudo porque o nosso Festival tem uma
grade componente de eventos gratuitos.
É fácil medir o impacto do
turismo cultural em termos de ocupação de espaços hoteleiros, mas é difícil
perceber se essa ocupação foi induzida por uma obra de arte de um determinado
artista disponível naquele hotel,
a não ser que se façam pesquisas específicas para saber as razões que moveram
os turistas a alojarem-se num determinado espaço.
A
MARRABENTA É O RITUAL DOS MOÇAMBICANOS
Até
que ponto o festival enraíza a Marrabenta na bacia semântica da identidade
moçambicana?
Primeiro é necessário na vivência dos
homens que tenhamos momentos de exaltação de algo. Em termos de Marrabenta e de
música popular moçambicana, o Festival Marrabenta é o ponto mais alto da
exaltação da nossa cultura, pelo facto de, num período alargado, envolver-se
uma grande quantidade de gente em vários espaços a reflectir sobre a nossa
identidade, nossa musicalidade, incluindo histórias de pessoas e do país.
Como humanos, anualmente, celebramos o
nosso aniversário, fazemos a nossa missa, rezamos a hora A, e, nesse sentido,
somos seres ritualizados. Com todo o respeito em relação aos outros, o momento
do Festival Marrabenta é ritualístico para o povo moçambicano ou, pelo menos,
pretendemos que seja isso, um momento ritualístico como o Dia da Água ou da
Independência, porque olhamos para nós mesmos, geração actual, velha e futura
geração; falamos sobre como se dança e não se dança; como se canta e não se
canta; no fundo reflectimos em torno da nossa vivência.
Em 2017, alargamos a fasquia dessa
reflexão levando o Festival Marrabenta à praia da Costa do Sol, onde se
encontra a nossa gastronomia marinha, porque estamos a dizer que se a nossa
identidade é o camarão, come-se neste e naquele lugar. Estamos a dizer ainda
que Fevereiro, enquanto um momento de ritual, já não é nosso apenas. Pertence
àqueles que consomem o sumo de canhum;
à celebração do Dia do Heróis Moçambicanos e da Batalha de Gwaza Muthini;
pertence àquele que gostam daquilo que é propriamente moçambicano; um dia se
tornará o Dia da Independência das Artes.
O Festival Marrabenta é uma ocasião
de ode do que é nosso. O momento de o macua saber que a Marrabenta também lhe
pertence.
De
que modo o Festival influencia a indústria cultural local?
São poucos os momentos em que tantos
artistas, músicos e instrumentistas, preparam-se para trabalhar em temas
moçambicanos como princípio. Ainda que nós buscamos trabalhos acabados, esses
profissionais depois multiplicam as suas obras. Esse processo é evolutivo. Por
exemplo, nestes 10 anos, conseguimos trabalhar com artistas como Azagaia e Jimmy
Dludlu, numa altura que ainda não tínhamos visto um concerto de ambos – jazzman
e rapper, respectivamente – a fazer Marrabenta.
Influenciamos a indústria cultural através
da nossa capacidade de realizar um evento propriamente moçambicano. Para uma
indústria funcionar é necessário que haja uma matriz de comparação como
acontece com as feiras da indústria automóvel.
O festival Marrabenta é um evento que, comparado
aos outros, tem a importância de quebrar a barreira do espaço entre uma geração
e outra, contribuindo para a produção de conteúdos, compilações e colaborações.
A criação de conteúdos é o combustível da indústria cultural. Se não se induz à criação, a indústria de criação morre.
Porém, cria-se mais colaborado.
A
escolha da praia para acolher a décima edição é casual ou intencional?
É uma escolha altamente intencional,
porque nós somos mais fortes quando estamos alinhados, como o ‘slogan’ da mCel
diz: ‘a vida é melhor quando estamos juntos’. Ao realizar uma iniciativa da
grandeza do Festival Marrabenta temos que estar verdadeiramente alinhados como
um país. Alinhados aos valores da moçambicanidade, e das nossas perspectivas e
expectativas como sector da cultura. A nossa direcção
como sector da cultura é um casamento entre o sector das artes e cultura com o
turismo. É um turismo cultural virado ao conhecimento da
moçambicanidade. O turismo cultural não significa colocar uma estátua num
quarto de hotel e alguém ir ocupar – só por isso. É preciso conhecer os lugares
de Moçambique, as suas gentes, as condições da sua vivência e apreciar isso.
Então, no alinhamento de todos nós – um
grupo de pessoas que estudou o fenómeno para gerar esta energia – entendemos
que esta pode ser a fórmula: da mesma forma que eu
quero que se acredite em mim quando se vai ao Festival Marrabenta, eu tento
acreditar no que os outros moçambicanos pensaram.
Para que o palco do Festival Marrabenta
ocupasse a praia da Costa do Sol, houve um esforço de todos nós para ampliar o
seu espaço ao reabilitá-lo, criando uma potencialidade para a sua utilização.
Construiu-se o Mercado do Peixe. Reservou-se uma zona de artesanato, incluindo
um parque de estacionamento.
A
MARRABENTA É O MOTIVO PARA SE CONHECER MOÇAMBIQUE
Que
significado tem esta atitude para a postura que o festival quer assumir?
Na verdade, aceitamos um desafio.
Entendemos o esforço que está a ser feito para dar vida as nossas
potencialidades naturais. O Festival Marrabenta segue a direcção da sustentabilidade
e promoção geral de Moçambique, em particular a cidade de Maputo – através da
Marrabenta – para dentro e fora do país, a fim de que quem não conhece a
Marrabenta passe a conhecer. Além de exportar, vamos fazer um trabalho virado
para gente mais nova.
Nesses 10 anos, muitos de nós criamos
novas raízes. Desde o princípio até esta parte, não estávamos muito preocupados
com as pessoas que não conheciam a Marrabenta. Nossa
preocupação era o resgate daquilo que sabíamos existir – mas que estava a ser
perdido. Uma vez que conseguimos atingir esse objectivo, agora estamos
focados naqueles que não conhecem a Marrabenta.
Queremos elevar este festival e a
Marrabenta na maior razão para gente vir a Moçambique conhecer o que de melhor
temos. Será uma porta de entrada para se conhecer o resto. Este movimento que
acontece em torno da Marrabenta tem que ser uma razão – na região e no mundo –
para alguém pegar no carro e sair da Suazilândia para Moçambique, ver o festival
e passar alguns dias no país; para que as pessoas do mundo que queiram conhecer
Moçambique, possam vir na época do Festival Marrabenta.
Em
10 anos, a sustentabilidade do festival é uma realidade ou um desafio?
O festival é feito de três pilares: o
público, a técnica e os artistas. Deve haver balanço entre elas para que estas
componentes tenham sustentabilidade. Em termos de público, a sustentabilidade
seria a capacidade de o festival comunicar naturalmente para as pessoas
aderirem ao evento; a sustentabilidade técnica tem a ver com os meios e a
capacidade de garantir a sua existência; a disponibilidade dos artistas é uma
parte pesada que, como a técnica, exige que se envolva os mecenas culturais
para cobrir os custos.
O festival é sustentável porque a parte
técnica está totalmente garantida. Internamente, conseguimos gerar as condições
técnicas para que o evento aconteça. Ou seja, o que podia impossibilitar a
realização do festival está resolvido, pouco importando se iremos envolver um
ou dois artistas, actuando em acústico, num pequeno ou grande palco. Esta
sustentabilidade foi gerada através da confiança dos artistas e as equipas de
produção, o que faz com que durante o ano a gente produza o suficiente para ter
a certeza de que os artistas estarão lá a todo o custo.
Geramos sustentabilidade nesse sentido,
ainda assim nós não somos autossuficientes.
Podemos fazer um festival firme, mas ele não é autossuficiente no sentido de
andar com os próprios pés. Ele depende e precisa do apoio de pessoas de todos
os sectores possíveis e imagináveis, principalmente do público.
Pode-se
referir ao maior legado do Festival Marrabenta?
O maior de todos é que a iniciativa
existe. A capacidade de fazer outra pessoa sonhar – saber que pode começar um
festival de nyau que pode atingir 10 anos. Nós criámos o Festival Marrabenta
sem história de evento similar com mais de 10 anos, além do Festival de Canto e
Dança que se tornou Festival Nacional de Cultura. Portanto, o simples facto de
haver um festival que acontece periodicamente dá azo para que outras pessoas
possam sonhar em realizar algo similar.
Não vejo a hora do mesmo, será que haveremos de lá nos ver novamente?
ResponderEliminarEspero bem que sim.
Um dia meu caro amigo. Quem sabe no ano que vem.
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