sexta-feira, 27 de julho de 2012

Render-se à Ilusão de Óptica!

À semelhança do que sucede na Música Para Surdos e Mudos, na conversa que travámos com Níria Fire aprendemos que, às vezes, os Homens têm dificuldades de falar. No entanto, o mesmo já não se deve considerar em relação às obras que compõem a Ilusão de Óptica. Perante as telas, instalou-se-nos um (novo) desafio: desvendar as suas mensagens...



Para os leitores mais atentos, quando analisada ao pé da letra, a nossa introdução pode sugerir a ideia de um grande contra-senso: “como é que uma pessoa (no caso, a autora das telas que compõem a mostra Ilusão de Óptica) pode falar e dizer menos – ou quase nada – que as suas criaturas artísticas?” Se a inquietação tiver sido formulada desta forma, nada mais nos resta do que reconhecer a sua legitimidade.


O facto é que as obras que se nos apresentam em Ilusão de Óptica (uma exposição de pintura patente no Centro Cultural Franco-Moçambicano, em Maputo, a qual pode ser contemplada até o dia 28 do mês em curso), de forma puramente subjectiva, revelam-nos uma série de aspectos, muitos dos quais profundamente nostálgicos, sobre a vivência da criadora, acerca de quem com ela convive, incluindo outras situações referentes à nossa vida.
Os que contemplam as criações artísticas em alusão, invariavelmente, ainda que sem alguma argumentação e/ou fundamentação objectiva, sentem- se impedidos a permanecer preso às telas. Ou pelo menos é o que acontece com os olhos. No entanto, curiosamente, apesar de esta situação ser constrangida pela vontade de apreciar outros quadros em nada desconforta o observador.
É interessante perceber que quando soubemos que Níria Fire iria expor as suas obras, ainda que não a conhecêssemos, dispusemo-nos a apreciálas antes que fossem tornadas públicas. Em resultado disso, não tivemos nenhuma indicação prévia sobre os títulos de cada uma, individualmente.
No referido encontro, as nuances, os movimentos que se nos apresentavam ainda que a tela fosse inerte, a coloração escarlate, entre outros motivos, impingiram- nos que aquela obra, Cortina de Seda no Seu Corpo Nu, traduzia alguma música e musicalidade. Ou seja, além de sonoridades, naquela criação não conseguíamos enxergar mais nada: quase que discutíamos com a autora na defesa dessa “tese”.
Entretanto, quando a artista nos revelou que além de You Can´t Stop Rock ´N´ Roll, a música era expressa em Música Para Surdos e Mudos, com a intenção de revelar que a nossa leitura não era consonante ao que ela estava e/ou pretendia expressar. Diante disso, questionamos-lhe sobre a Música Para Surdos e Mudos. A sua resposta foi uma questão: “como é que descobriram em Cortina (...) havia música? O segredo é sentir!”
Um aspecto animador, em tudo isso, é que, em certo grau, Níria admitiu a possibilidade de que não estávamos completamente enganados. Se assim o fosse, este comentário de Eduardo White não faria muito sentido: “O que a autora provoca, com a maioria do trabalho aqui exposto, não é mais nada do que obrigar a descobrirmos o que nem sempre ela descobriu e a determo-nos nas perguntas a que, por certo, poucas vezes respondeu”.

Impossível não haver música

De uma ou de outra forma, nas obras de Níria há prevalência de música e musicalidade. O que sucede é que, muitas vezes, com a excepção do que acontece em You Can´t Stop Rock ´N´ Roll, é difícil percebê-la. Por exemplo, as obras Poemas Sem Palavras e Música Para Surdos e Mudos sugerem um tipo de sonoridades que nós, as pessoas supostamente normais, não é fácil compreender.
E a par disso, um novo aporte do texto de White é indispensável para melhor compreensão: trata-se de uma “Visão transitória do Mundo e, por isso, bastante plástica, a sua pintura empurra-nos para a sensibilidade e para a abstracção, para o pensar fluido das cores, das linhas e da cosmogenização do que retrata. Quer dizer, um olhar urbano, se me permitem que assim o visualize, sobre as luzes de um Universo muito mais extenso, muito mais além dele mesmo” (Sic.).
Ao que tudo indica, a questão da Música Para Surdos e Mudos é muito mais profunda do que esta aparente necessidade de se captar a sua dimensão subjectiva e quase inexistente: Quantas vezes e quantos cidadãos moçambicanos (e não só) não são compreendidos (e comprometidos) por nós, os supostos normais, em resultado da nossa incapacidade de captar e dominar a linguagem dos signos?
Quantas pessoas, algumas das quais próximas de cada um de nós, acabam por ser isoladas como consequência do facto de, para si, a fala se mostrar inadequada para expressar os seus problemas, crises, medos e receios?
Se as limitações da oralidade resultam em desastres para quem dela – em determinado momento e estádio de vida social – não benefi cia não nos parece ser falso que na mesma ocasião a sua não exploração pode fecundar a emergência de outros saberes no domínio da comunicação.
Caso contrário, a relação que se estabelece entre Níria Fire e as artes plásticas não teria explicação: “Sempre fui uma pessoa acanhada, reticente, que, em resultado disso, pouco falava sobre os seus sentimentos, ideias e/ou problemas perante os outros. É em função desta realidade que, ainda que eu não percebesse, a pintura e o desenho acabaram por se desenvencilhar de mim”, considera.
Desengane-se, então, quem pensa que a relação de Níria com as artes – pintura, música, escultura, poesia, etc., – é algo superfi cial. Trata-se de um encontro muito profundo, como será o debate que a sua geração trava e/ou travará no futuro.
Mas é como a artista afirma: “comecei a pintar ainda criança. Na verdade não se tratava de pintura como tal, mas eram alguns gatafunhos de criancice daí que, em resultado disso, só tardiamente comecei a perceber que daquilo se podia gerar arte”.

Cor é vida

Analisando-se sob o ponto de vista técnico, sabe-se que as obras que corporizam a Ilusão de Óptica foram concebidas com base no acrílico sobre papel e/ou passpatour, incluindo algumas técnicas mistas. Mas as formas cravadas em tela não raras vezes confundem-se com obras geradas a partir da aguarela.
O que se pretende afirmar é que as técnicas empregues por Níria não são, de todo, uma inovação. No entanto, as peculiaridades das suas obras serão denunciadas pela forma como projecta as tintas na tela, os seus traços quase incomuns, a combinação mestra de cores gerando-se novas tonalidades de coloração como se, previamente, a artista tivesse alguma obsessão em reiterar um discurso milenar: “não é possível viver sem cor”. Ou seja, “cor é vida”.
A verdade é que “quando desenvolvo algum trabalho, muitas vezes, no princípio não tenho uma intenção clara sobre aquilo que pretendo cravar na tela. O que sucede é que eu jogo a tinta nos suportes e, ao longo do processo, a obra ganha determinada definição sob o ponto de vista temático e figurativo”, considera a artista ao mesmo tempo que resgata o tema da música: “a minha arte é espontânea, o que significa que os traços de musicalidades, por exemplo, que se denunciam aparecem casualmente e de forma espontânea”.
Enquanto isso, para os cépticos uma certeza é edificada: a cor faz parte de nós, da vida dos Homens. Talvez seja por isso que os diversos fragmentos que compõem o cosmos – a terra, os mares, os céus, a natureza, as pessoas, os animais – possuem cores diferentes e diferenciadas. A cor é vida. Ela infl uencia muito o nosso estado de espírito. É a par destas certezas que Fire alarga a esfera da influência da cor para o campo dos alimentos.

Mulher nas artes

Para os menos atentos, como foi o nosso caso no dia em que visitámos a mostra, as obras de Níria Fire podem, muito bem, ser caracterizadas por uma escassez da figura feminina, o que não é verdade: “Provavelmente haja mais mulheres do que pessoas do sexo masculino nas telas”.
Isso faz com que o apreciador tenha de observar com mais atenção as telas para que possa perceber não somente as mensagens que se transmitem, mas também as figuras que, em certo grau, aprecem escudadas pelo aspecto estético, o belo, das obras.
Ora, se quisermos abordar o tema da mulher como uma protagonista (válida) nas artes, perceberemos que, no contexto moçambicano, de facto, ela ainda não se faz muito presente.
Para Níria, nas artes plásticas, tal ausência é mais acentuada. Aliás, “é um problema que deriva do facto de que aqui, no nosso país, as pessoas que têm o poder de infl uenciar o rumo dos acontecimentos apoiam sempre os artistas que já estão estabelecidos. Em resultado disso, por mais que um novo artista seja talentoso torna-se muito difícil que o mesmo seja bem-sucedido”.
Por isso, além das dificuldades comuns (como, por exemplo, o alto custo e a escassez de material para fazer arte no país, as barreiras da elevada taxação alfandegária em relação às obras adquiridas no exterior) que as pessoas que se dedicam às artes no país enfrentam, Níria Fire considera que quando se trata de mulheres, os entreves são inúmeros.
O que sucede como corolário do cenário é que, as mulheres, sobrecarregadas com as responsabilidades que derivam do casamento e do quotidiano da gestão do lar, desistem precocemente.
Como tal, “nós, os artistas, que permanecemos nas artes, fazemo-lo por amor. Não menos importante, eu gostaria de apelar à mulher moçambicana para que não desista de actuar no campo artístico. Só assim podemos revelar a nossa mais- -valia na área”.
Entretanto, apesar de reconhecer que as dificuldades actuais abespinham qualquer artista, Níria Fire está animada pela crença de que a situação irá mudar. Basta que se tenha em mente que “mesmo no tempo colonial, só havia uma mulher nas artes plástica, Bertina Lopes. Actualmente há mais, o problema é que ainda somos em número muito mais reduzido”.

Tal mãe, tal filho

Refira-se que entre as 39 telas que corporizam a mostra Ilusão de Óptica, pelo menos três são de um convidado especial, Gilberto Angelino Fernandes, ou simplesmente Pappy, um miúdo de sete anos de idade. A relação de Pappy com as artes é quase que umbilical. Quando o miúdo tinha quatro anos, em 29009, altura em que a mãe, Níria Fire, realizou a sua primeira mostra individual em Maputo, o petiz participou, na mesma condição, com quatro telas.
“Desde cedo, o miúdo prendia- se muito às minhas obras. Na minha casa, quase todos os compartimentos possuem telas de arte. Penso que terá sido por isso, e por outras razões, que quando a criança começou a enxergar, imediatamente, a sua vista se deixou prender às telas de artes. Mais adiante, na época em que o seu tacto começou a ter melhor definição, sempre que lhe déssemos papel e caneta, o miúdo rabiscava figuras e formas com algum movimento e sentido”, explica a mãe.
Mas, mais do que isso, “sempre que eu começasse a trabalhar, ele, o Pappy, não raras vezes, começava a interferir no meu trabalho. Quando contrariado, procurava o material para pintar sobre as paredes da residência”.
Entretanto, como acontece com qualquer outro artista, nem sempre o pequeno Pappy foi compreendido. Por exemplo, “a minha mãe reclamava que daquele jeito não ia dar porque as paredes ficavam sujas, ao passo que o meu pai dizia o contrário: não há nenhum problema. Os desenhos são bonitos”.

Ilusão de Óptica

Ainda que o aspecto subjectivo que caracteriza as obras expostas, em Ilusão de Óptica, possibilite a participação activa do público que demanda a mostra, sobretudo na construção da mensagem que se pretende transmitir, até que ponto, sob o ponto de vista temático, a referida mostra é elucidativa? A verdade é que, quando comparada com a sua primeira exposição individual realizada em 2009, em Maputo, sob o mote Cada Ponto de Vista é Vista de Um Ponto, não se encontram grandes diferenças. Ou seja, tal como aconteceu na primeira, em Ilusão da Óptica, “cada pessoa tem a possibilidade de apreciar as obras e interpretá-las à sua maneira”.
Todas as pessoas são livres de ver, sentir e interpretar as obras de arte. A obra de Níria abre espaço para que os Homens se libertem e intervenham através de várias vertentes do olhar sem, com isso, serem impelidos a abandonar o seu espaço de pertença.
Enfim, se, efectivamente, as mensagens que se transmitem à sociedade em Ilusão de Óptica representam algum tipo de paranóias, enigmas, utopias, nostalgias, vale a pena desvendar os objectivos que – através do poder telúrico – se pretende alcançar.
Em Ilusão de Óptica, de Níria Fernandes, a quem os artistas moçambicanos, sobretudo os agremiados no Núcleo de Arte, apelidam de Fire, aprendemos algo: “para as artes, os momentos de inspiração não se provocam, desabrocham”.
Em relação às mensagens que a artista emite na sua obra, cada cidadão pode desvendar o seu conteúdo bastando, para o efeito, que visite a mostra no Centro Cultural Franco-Moçambicano, na capital do país.





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