sexta-feira, 27 de julho de 2012

Marginalizar a marginalização!


Podiam ser a metáfora da ruína em que se encontra a Avenida Marginal na Baía de Maputo. No entanto, a verdade é que nem o elevado custo de vida com que se debatem na capital os arruína. Resgatando os desperdícios em que determinados objectos se transformam depois de usados, os membros da Associação de Fomento da Escultura Maconde (AFEMA) imortalizam a mais antiga forma de produção da herança cultural da humanidade, o artesanato, e garantem a (própria) sobrevivência.

A partir dos recursos que utilizam para a produção dos seus objectos e/ou utilitários como o jornal, por exemplo, pode-se fazer inúmeras leituras e interpretações em relação à vida social do nosso país.
É que como é do conhecimento geral, o jornal é um meio de comunicação impresso. Na verdade, ele é um produto que deriva de um conjunto de actividades realizadas por uma equipa de jornalistas, o jornalismo. No entanto, é a partir desse objecto bibliográfico, rico em termos de informações que, uma vez transformado em algo (supostamente) inútil, os artesãos de que estamos a falar produzem novos objectos utilitários num novo formato físico.
Diante disso, a interpretação segundo a qual há falta de gosto pela leitura, caso fosse feita, provavelmente não seria de todo correcta. De qualquer modo, um segundo ponto de vista que considera que existe, na sociedade moçambicana, alguma carência em relação ao espírito de criação de arquivos de ficheiros que contêm informação não parece ser absolutamente errado como o primeiro exemplo.
Seja como for, havendo ou não esta percepção por parte de quem trabalha com os referidos materiais na elaboração de uma série de objectos de adorno como, por exemplo, vasos, mesas de cabeceiras, quadros de decoração, pulseiras, a verdade é que é com base no aludido instrumento que certos moçambicanos encontram matéria-prima para o seu labor.
As matérias-primas
Além do jornal, o trabalho dos artesãos filiados na AFEMA é feito com base em materiais como a madeira, o gesso, algumas sementes, conchas e carapaças de alguns animais aquáticos, ossos e peles de animais quadrúpedes com base nos quais se criam objectos de adorno e de utilidade doméstica.
Em relação à madeira, vale a pena afirmar que os artesãos exploram mais o pau-preto, o pau-rosa, o sândalo e a mafurreira. Esta selecção não se deve somente à boa consistência do seu material como também à sua facilidade em termos de acesso e abundância.
Tais recursos madeireiros são facilmente encontrados nas províncias de Inhambane e de Cabo Delgado, no sul e no norte do país, respectivamente. Invariavelmente, os artesãos preferem trabalhar com as madeiras preciosas, não somente, devido à durabilidade que têm mas, acima de tudo, por causa da beleza que ostentam: “atrai muito a atenção dos turistas”, consideram.
Em cada um dos objectos expostos ao longo da Avenida Marginal, em Maputo, é possível ler-se alguns títulos como, por exemplo, Alfabetização e Escassez de Água. Portanto, em certo grau, as referidas obras possuem um valor didáctico-pedagógico transmitindo uma série de conteúdos e informações.
Nasci no seio do artesanato
Durante a percurso realizado ao longo da Avenida Marginal, em Maputo, onde se encontram a trabalhar os artesanatos filiados na AFEMA, travámos uma conversa com Calú Nchakatcha.

Originário da província da Cabo Delgado, Nchakatcha é membro da AFEMA há 12 anos e dedica-se ao artesanato desde quando tinha três anos de idade orientado pelo seu pai. Mas só aos 18 anos é que decidiu que, definitivamente, devia trabalhar como artesão.
Vive maritalmente e é pai de um rapaz. Diariamente, desloca-se de Magoanine para a praia de Costa do Sol, onde realiza as suas actividades.
“A arte é a minha paixão”, comenta ao mesmo tempo que dá a impressão de que não está preocupado em procurar um novo (e diferente tipo) de ocupação. Órfão de pais há 15 anos, Calú diz que é no artesanato que encontra o amparo paterno. Afi nal, “a minha sobrevivência depende disso”.
Ou seja, para Nchakatcha, “a arte é o meu dia-a-dia. Não sei se algum dia conseguirei trabalhar para alguém, cumprir horários de trabalho pré-estabelecidos. Aqui sinto-me livre. Se não me sinto com boa disposição para trabalhar não venho e não há problemas”, acrescenta.
Ousadia feminina
No seio de uma colectividade de mais de duas dezenas de homens encontra-se Érica Mateus. Esta artesã tem 25 anos de idade. É natural de Maputo e é residente do bairro de Matendene. É membro da AFEMA há três anos.

Uma assumida fã do artesanato, não nos restaram dúvidas quando ouvimo-la afirmar que “me sinto bem a trabalhar no meio dos meus colegas. A nossa relação e simples e boa como a nossa actividade”.
Encontra nos rapazes que a rodeiam verdadeiros companheiros de labuta e a partir dos quais se adquirem novas (e valiosas) experiências. Érica realiza quase todo o tipo de obras que os seus colegas de sexo masculino produzem.
No entanto, a parte mais importante é que “consigo manter todas as minhas despesas com o dinheiro que ganho no trabalho artesanal”, diz ao mesmo tempo que não consegue abrigar o orgulho que se estampa no seu rosto.
Refira-se que a Associação de Fomento da Escultura Maconde (AFEMA) foi fundada em 1991 por artistas provenientes de diversos cantos do país e tem como objectivo unir e valorizar os fazedores da referida arte.
Entretanto, se a realização de trabalhos humildes, como a reciclagem de alguns materiais (supostamente) inúteis, representa alguma marginalização social, então, os membros da AFEMA não se deixam afectar por esse estigma.
Afinal, parte importante do seu trabalho consiste na reciclagem de objectos destruídos e, aparentemente, sem nenhuma utilidade. Mais importante é que é com base no referido trabalho que, muitos deles, se desviam de alguns procederes socialmente desviados e desviantes.

Fonte Original: http://www.verdade.co.mz/cultura/28992-marginalizar-a-marginalizacao

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